“No caso do Pelão, podem crer, nossa dívida cultural para aquela outra, a externa. É altíssima e vai durar para sempre – porque apreço não tem preço; não há dinheiro que pague, não apenas os serviços à nossa música, mas a generosidade e o desprendimento com que foram prestados”, parágrafo final do prefácio assinado por Aldir Blanc para a biografia Pelão – A Revolução Pela Música, de Celso de Campo Jr (Garoa Livros, 2020).
Aldir Blanc faleceu em 4 de maio de 2020. Pelão (João Carlos Botezelli), teve sua morte anunciada nessa quarta-feira, 1º de setembro, a um mês de completar 79 anos. Pelão fez muita coisa na vida, a maior parte ligada à música, trabalhou nos bastidores de programa de TV, foi divulgador de gravadora. Ao alcançar a difícil idade de 30 anos, estava metido com política. Já bastante entrosado no meio, em 1973, ele foi à Odeon e conseguiu ter acesso a Milton Miranda, o poderoso chefão da gravadora. Na chincha, disse-lhe que queria produzir um LP de Nelson Cavaquinho, então na, para a época, macróbia idade de 60 anos. Nelson já gravara dois discos, mas desnecessariamente burilados. O seu valor estava em ser pedra bruta, e Pelão o deixou como tal. Gravou Nelson Cavaquinho com o violão em primeiro plano, trouxe pro estúdio o parceiro Guilherme de Brito. Deixou de fora do disco clássicos já gravados por estrelas da MPB. Teve a sorte de o sambista ter outros do mesmo quilate, feito O Bem e o Mal, ou Juízo Final.
FOLHAS SECAS
Nesta época, 1973, Beth Carvalho reunia composições para um disco de samba. Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito deram-lhe a inédita Folhas Secas. Cesar Camargo Mariano fazia os arranjos para Beth Carvalho. Cesar, então casado com Elis Regina, mostrou-lhe Folhas Secas. Elis gravava um disco, e cismou de incluir Folha Seca no repertório. Beth soltou os cachorros em cima de Pelão, ao saber que Elis gravara a música. Resumo: naquele ano Folhas Secas brilhou: está no disco que Elis lançou em agosto, o que Beth Carvalho lançou em setembro e finalmente no LP que Nelson Cavaquinho lançou em novembro.
Pelão especializou-se em produzir compositores que não tinham vez no disco. Numa época em que a estimativa de vida do brasileiro era muito baixa, passar dos 60 igualava-se a estar com um pé na cova. Aos 63, Adoniram Barbosa, que só gravara bolachões em 78 rotações, tornou-se um fóssil. Vivia de pontas em novelas, ou comerciais. Seus sucessos em sua maioria foram gravados por Os Demônios da Garoa, e outros intérpretes. Pelão o levou para o estúdio em 1973. Adoniram na época participava da novela Mulheres de Areia, da TV Tupi, e aparecia num comercial badalado, da cerveja Antarctica, do clássico bordão: “Nós viemos aqui pra beber ou pra conversar?”
O disco, no entanto, só foi lançado no ano seguinte, porque esbarrou na censura, que vetou cinco letras. Para Tiro ao álvaro, por exemplo, alegou-se que “A falta de gosto impede a liberação da letra. Comentário que serviu também a O Casamento do Moacir, Já Fui uma Brasa e Um Samba no Bixiga. Já em Despejo na Favela foi detectado subversão: “O final da letra dá ideia de protesto contra a ordem judicial e a condição social de Narciso na favela. “Desta maneira opinamos pela interdição da mesma”. Já o Samba do Ernesto não foi proibido mas o censor sugeriu que o autor fosse matriculado no Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), por causa do português repleto de adoniranismos. Vendeu tão bem, que a Odeon pediu mais um disco de Adoniram, e pra já.
DE JOELHOS
Eu bebia com uma turma no Calabouço, na Sete de Setembro, nos anos 90, quando tivemos Pelão em nossa mesa. Nem me recordo com quem ele chegou, provavelmente com Toinho Alves, do Quinteto Violado, eram muito amigos. Sei que o papo foi bom, ele passou uns discos. Era bom de papo e de chope. Pela altura, devia aguentar muitos. Lá pras tantas, um dos bebedores passou a criticar Arraes, que passava por um fase de baixa popularidade. Nisso, Pelão levantou a voz: “Pera lá, ninguém fala mal do doutor Arraes na minha frente”.
É difícil pois imaginar um homenzarrão daquele, ajoelhado aos pés de alguém pra lhe fazer um pedido. Foi o que fez Pelão diante do pernambucano Aluízio Moraes, no bar Jogral. Pediu para gravar um álbum de Cartola na Marcus Pereira, da qual Aluízio era sócio. Cartola estrearia finalmente em disco. Que não teve problemas com a censura. Teve com o outro sócio, o que emprestou o nome à gravadora: Marcus Pereira, que achou a gravação uma merda. Reclamou até de um cachorro latindo no meio. O cachorro era a cuíca tocada pelo Mestre Marçal. Pelão apelou para a crítica. Procurou Alberto Helena Jr,no Jornal da Tarde para lhe mostrar a fita de Cartola. Ele não estava, quem pegou a fita foi Maurício Kubrusly, que um bela matéria, com o título: “Já está gravado o melhor disco do ano”. O resto é história.
A lista de discos produzidos por Pelão é longa, vai de Guilherme de Brito, Raphael Rabello, Inezita Barroso, com o violeiro Roberto Correa, Mestre Marçal, para citar uns poucos. Pelão era muito ligado ao Quinteto Violado, desde que produziu o disco Coisas que Lua Canta, lançado em 1983, pela Continental, que tem na contracapa uma carta enviada por Pelão para o contrabaixista Toinho Alves. Acho que Pelão bebeu com a gente em 1993, quando veio ao Recife produzir um disco do Maracatu Nação Pernambuco, lançado pela Velas, gravadora de Ivan Lins. Enfim, se foi Pelão, menos um dos bons. Pra outras histórias de João Carlos Botezelli sugiro o livro de Celso Campos Jr. A Revolução Pela Música.
(foto: divulgação)
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