O fenômeno Coração de luto completa 60 anos

“Teixeirinha, cantor paulista, desconhecido, gravou Coração de Luto, letra com erros e música monótona. Pois bem: já vendeu 200 mil discos (nem a fábrica Chantecler sabe explicar). A notinha é da Revista do Rádio (edição de junho de 1961). Vítor Mateus Teixeira, gaúcho de Rolante (1927/1985), foi um desses fenômenos que irrompem vez por outra na música popular, pegando todo mundo de surpresa.

Quando Coração de Luto estourou, a bossa nova encontrava-se no auge, mas era música pra elite, a cara da Zona Sul carioca. Nas páginas de cultura da imprensa não se falava noutra coisa, mas quem tocava no rádio pra valer eram os intérpretes populares: Ângela Maria, Núbia Lafayette, Alcides Gerardi, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Dalva de Andrade, e o palhaço Carequinha. Estes artistas citados cantavam as músicas que figuravam entre as dez mais executadas no país, e Teixeirinha entrou nesta lista.

Na época a crítica de discos ficava com compositores, radialistas, que mantinham colunas em jornais e revistas, ou por nomes como Lucio Rangel, seu sobrinho Sérgio Porto, Claribalte Passos, que desconsideravam a música cantada pelo povão. Coração de Luta foi vítima de zombaria e até censura. Algumas emissoras de rádio, sobretudo de São Paulo recusavam-se a tocá-la por considerar a letra de um mau gosto escabroso. Um dos que se recusou a tocar Teixeirinha foi Jair Amorim, radialista e compositor de muitos sucessos, com o parceiro Evaldo Gouveia  

Teixeirinha canta sua tragédia pessoal. Voltava da escola, quando avistou o rancho onde morava com a mãe devorado pelo fogo. Ela não conseguiu sair e morreu carbonizada. O garoto órfão ficou sozinho no mundo, o que conta nos versos do seu supersucesso: “Passei fome passei frio/por este mundo perdido/quando mamãe era viva/me disse filho querido/pra não roubar não matar/não ferir, não ser ferido/descanse em paz minha mãe/que eu cumprirei seu pedido”.

Porém a verdadeira história é até pior. A mãe dele fez uma fogueira para incinerar o lixo, no entanto, foi acometida de um ataque de epilepsia e caiu dentro. Quando os vizinhos a descobriram ela se encontrava com queimaduras pelo corpo inteiro, e não resistiu. O pai morrera quando Teixeirinha estava com seis anos. A mãe, quando estava com nove.  

Letras assim eram comuns nos dramas encenados em circos de periferia, mas a canção do gaúcho foi bem além do picadeiro, tocando Brasil afora, e causando perplexidade na elite. Um mês depois da notinha na Revista do Rádio, Coração de Luto chegava aos 300 mil discos de 78 rotações, 20 mil LPs vendidos, e no topo das paradas. Mas a indústria do entretenimento tentava ignorar Teixeirinha, quebrando uma regra que ela própria estabeleceu. Qualquer artista estourado no rádio, invariavelmente, era contratado por uma rádio ou TV, e ganhava um programa próprio. Menos Teixeirinha, que atraía a atenção dos intelectuais na imprensa, ou em discussões na TV. Se muitos ainda não haviam assimilado a bossa nova, a maioria não conseguia entender o sucesso de Coração de Luto: “O cantor Teixeirinha, que gravou o famoso Coração de Luto, já ultrapassou a casa dos quatro milhões e cruzeiros, ganhos com a venda desse disco-incógnita (sic), que continua desafiando o entendimento de todos os técnicos no assunto”, mais uma notinha da Revista do Rádio, em julho de 1961.

Quando Teixeirinha estourou com Coração de Luto, já era um sucesso no Sul, com 40 discos gravados, quase tudo com composições próprias, e em ritmos regionais gaúchos.   Ele contou que passou muitos anos tentando compor uma música para a mãe (que faleceu com apenas 28 anos), até que um dia, em 1959, a inspiração veio. Mas garantiu que a gravou como uma homenagem à genitora, sem imaginar que faria sucesso. Tanto é assim que Coração de Luto foi lado B de um 78 rotações, que tem Gaúcho de Passo Fundo no lado A. O bolachão foi lançado, em 1960, no RS pelo selo Sertanejo. No ano seguinte, lançada pela gravadora Chantecler, com mais estrutura para divulgação e distribuição, Coração de Luto viralizou. E não apenas no Brasil, na Argentina fez muito sucesso, e recebeu pelo menos dez regravações.

Na crônica Churrasco de Mãe (de junho de 1961, no paulistano Diário da Noite), Sergio Porto contou que o diretor da Chantecler, de nome Paulo Brandão, de tão envergonhado pelo sucesso de Coração de Luto pedira demissão e ia fundar uma nova gravadora: “Vou me limpar. Vou ganhar menos, talvez até perder dinheiro. Mas – tal como a mãe Teixeirinha – eu também quero ir pro céu quando abotoar o paletó”, teria dito Brandão, a Sergio Porto, que incluiu o mea culpa na crônica.

Coração de Luto saiu das paradas em 1962, mas continuou na programação das emissoras de rádio, que se renderam ao gaúcho, de um metro e meio de altura, e apoquentado, que se enfezava quando duvidavam da veracidade da morte da mãe. Pior é que o “Churrasco de Mãe” foi uma brincadeira que pegou. Contam que no início dos anos 80, Teixeirinha foi entrevistado por Marília Gabriela que, inadvertidamente, teria pedido que ele falasse sobre a música “Churrasquinho de Mãe”, para espanto do cantor, que armou o maior barraco ao vivo. Teixeirinha continuou fazendo sucesso até o final da vida, claro, nada tão retumbante quanto Coração de Luto, que foi o filme nacional de maior bilheteria no país em 1967, ano de Terra em Transe.  Quando faleceu vítima de infarto há 36 anos, ele contabilizava mais de 25 milhões de discos vendidos. (a foto de Teixeirinha que ilustra a postagem é assinada por Adolfo Alves)

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