Num fim de tarde de 1960, o radialista, jornalista, apresentador, e, Brivaldo Franklin, desceu do ônibus em Jardim São Paulo, Zona Oeste do Recife, onde morava. Voltava do trabalho, fazia o popular personagem Zé do Gato, na Rádio e TV Jornal do Commercio. De uma casa, em frente à parada do coletivo, escutou um violão. Foi ao portão, bateu palmas, apareceu um senhor. Brivaldo perguntou quem estava tocando. O senhor respondeu que era o filho dele, um garoto.
Zé do Gato quis conhecer o menino, que lhe apresentou um curto recital. O artista elogiou o jovem violonista e prometeu que ele iria tocar no programa Quando os Violões se Encontram, que ia ao ar aos domingos, na Rádio Jornal do Commercio, reunindo os melhores instrumentistas de cordas que atuavam então no Recife.
No domingo , Henrique José Pedro Annes, o nome do garoto, descoberto por Brivaldo Franklin estava no estúdio da Rádio Jornal do Commercio com seu violão. Tinha 14 anos incompleto.
A inclinação para tocar um instrumento bateu cedo: “Tinha um tio, Arnaldo, que tocava flauta, era amigo de Felinho (o saxofonista Félix Lins de Albuquerque), criador das célebres variações no frevo Vassourinhas. Ele me sugeriu que eu tocasse flauta, meu pai me deu um cavaquinho. Aprendi as notas, e tirava as músicas ouvindo os discos do meu pai. Minha mãe me deu um violão, mas ninguém queria que eu fosse músico. Queriam que fizesse engenharia”.
Quando os Violões se Encontram é um dos capítulos mais ricos da história do violão brasileiro. Participavam dele violonista lendários (mas pouco conhecidos fora de Pernambuco), Zé do Carmo, Dona Ceça, Romualdo Miranda, Aníbal Carneiro (irmão do embolador Minona Carneiro), Tozinho, Tonhé, Canhoto da Paraíba. Foi no meio destas feras que caiu o adolescente violonista: “O violão brasileiro deve muito ao Nordeste. Daqui saíram nomes importantíssimos como João Pernambuco, Quincas Laranjeiras, Meira, que foi professor de Baden Powell, de Rafael Rabello. Nosso choro é bem diferente do carioca. Eles fazem um choro mais sincopado, cheio de ornamentações, enquanto o da gente é diferente, tem muito do frevo”, comentou Annes, numa entrevista ao autor deste texto.
Quando começou a tocar no rádio, ele pensou adiante. Queria viver do violão, e um dia aquele formato de programa iria ter fim. Começou a estudar com os mestres que naquele tempo, algo que não é artigo que falte, até os tempos atuais, no Recife: “Estudei violão clássico com Amaro Siqueira, teoria e solfejo com Severino Revoredo, fui aluno do influente Jose Maria Carrión, professor de muita gente boa, Brasil afora”. Isto nos primeiros anos da década de 60. Em 1967 começou a dar recitais, os primeiros dividindo palco com o violonista Julio Moreira dos Santos, no Teatro Popular do Nordeste, onde aconteciam os grandes espetáculos da capital pernambucana na época (ficava na Conde da Boa Vista, avenida que corta o Centro da cidade)
Coincidentemente na época estava sendo levado no TPN o musical Memória de Dois Cantadores, com Edy Souza (depois Edy Starr), Teca Calazans, Geraldo Azevedo, Marcelo Melo e Naná Vasconcelos, que começaria a desvendar os mistérios do berimbau a partir deste espetáculo. Ele estrearia em disco no ano seguinte, a convite de Canhoto da Paraíba que, generosamente, dividiu com Annes, então com 22 anos, o que também seria seu LP de estreia, Único Amor, gravado e lançado pela Rozenblit, e produzido pelo maestro Nelson Ferreira.
Ele contava que no meio da gravação, o maestro, figura imponente e onipresente na cultura do Recife, pediu que parassem e perguntou se Annes sabia ler partitura. Com a resposta afirmativa, o maestro sugeriu que seguisse a partitura, queria uma coisa mais quadrada, e eu estava fazendo umas dissonâncias. Foi o primeiro cachê de Henrique Annes, o suficiente para tomar um banho de loja, comprou camisa, sapatos, calça, cinto.
Depois de décadas de atuação na música pernambucana, e brasileira, como músico, professor, em 2016, Henrique Annes chegou aos 70 anos e se aposentou. Quer dizer, como ele mesmo, diz, pensou que ia se aposentar. Foi por pouco tempo: “Deixei de dar aulas desde 2004, uma coisa que fiz a maior parte da minha vida. Acho que tenho uma bagagem grande, e muita coisa a ensinar aos jovens. Então resolvi voltar a ensinar, na Academia Musical Santa Terezinha, na Torre”, conta Annes, que foi professor da Universidade Federal, e do Conservatório Pernambuco de Música.
O seu currículo na música pernambucana estende-se por seis décadas. Do citado, e histórico, Quando os Violões se Encontram, passando pelo Armorial, Orquestra e Oficina de Cordas Dedilhadas, mais uma discografia solo, curta, sobretudo para a dimensão do violonista, mas consistente. Um dos discos é inteiramente voltado à obra de Zé do Carmo.
Henrique Annes comemorou em grande estilo, em 2012, os 50 anos de carreira, com um show acontecido no Teatro Boa Vista, que ratificou o prestígio que desfrutava no meio musical, pela quantidade e qualidade dos convidados: os pernambucanos Vinícius Sarmento, Racine Cerqueira, Beto do Bandolim, Nenéu Liberalquino, Lalão, maestro Spok, Naná Vasconcelos, Turíbio Santos (MA/RJ), Nonato Luiz (CE), Sebastião Tapajós (PA), Guilherme Calzavara (PB) e Marcus Tardelli (RJ). O concerto foi lançado em DVD em janeiro de 2019, com show no Teatro de Isabel.
Annes, que faleceu, nessa segunda-feira, 20 de setembro, aos 75 anos, guardava a memória da música pernambucana, especialmente do choro. Felizmente, não apenas na cabeça. Mantinha em casa precioso acervo com gravações de praticamente todos os grandes instrumentistas com conviveu desde a adolescência. Jactava-se de ter conhecido tantos músicos virtuosos, sem se dar conta de que era um deles. (foto: Amaro Filho)
História do violão brasileiro.
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aqui tá faltando um museu da imagem e do som, atuante, com verba, para preservar a memória desses artistas
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falta aqui um museu da imagem e do som com grana pra preservar a memórias desses artistas
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história e memória
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Bela homenagem. Annes merece um trabalho de maior fôlego. Quem se habilita?
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o acervo dele merecia uma imersão
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