Preciosidades inéditas de Aldir Blanc

Quem desfruta de intimidades com bares e botequins, sabe da importância de se ter assento assegurado na mesa da diretoria. Aldir Blanc tinna cadeira cativa na diretoria, em qualquer estabelecimento etílico em que desse o ar de sua graça. Assim, nada mais correto que o álbum Aldir Blanc Inédito (Biscoito Fino), abrir com o samba Agora Eu Sou Diretoria, parceria com João Bosco: “Entrei pra escola da alegria/passei no vestibular/toda chefia principia/ um jeito de governar/mandei uma filosofia/ feliz é quem na diretoria/ apóia a charanga e a poesia/ na base da só simpatia”, os versos iniciais de uma composição feita por Aldir e Bosco, para um comercial de cerveja, que acabou na gaveta. João reaproveitou a música, criando a segunda parte com ideias do parceiro. O disco aterrissou hoje nas plataformas digitais (terá também versão física)

Aldir Blanc Inédito é uma celebração ao compositor, em seu aniversário de 75 anos. Ele faleceu vítima da covid-19, em maio de 2020. Um projeto que começou a nascer quando Mary Lucia de Sá Freire, sua viúva, reuniu letras, poemas, manuscritos inéditos, que a cantora Ana de Hollanda, e Sônia Lobo, da editora Nossa Música, levaram à gravadora Biscoito Fino. Os amigos e parceiros tocaram o projeto, incluindo, obviamente, os mais constantes, além de João Bosco, Moacyr Luz, Guinga, mais Nei Lopes, Joyce Moreno, Sueli Costa, Leandro Braga, Moyseis Marques, Alexandre Nero, Antonio Saraiva, e Clarice Grova.

O time de intérpretes é estelar, Maria Bethânia, Chico Buarque, Leila Pinheiro, Guinga, João Bosco, Joyce Moreno, Dori Caymmi, Anna de Holanda, e Alexandre Nero, este último figura entre os novatos na obra de Aldir Blanc. Assim como Moyseis Marques, Nei Lopes, em O Baião da Muda. Ou o que é até surpreendente Joyce Moreno. Os dois foram contemporâneos no festivais dos anos 60, mas nunca copuseram juntos. Joyce musicou Aqui, Daqui, poema de Aldir publicado no jornal Tribuna da Imprensa há 35 anos. A produção do álbum é de Jorge Hélder, e o arranjos de Cristóvão Bastos, dois dos mais requintados músicos do Brasil, que tocam no disco, com gente do mesmo naipe, para citar uns poucos, Marcos Nimrichter (piano), Jurim Moreira (bateria), ou João Lira (violão).  A capa é de Elifas Andreato.

Algumas músicas estavam só esperando a vez, caso de Palácio de Lágrimas, que Blanc deu para Moacyr Luz musicar, a intenção era que Maria Bethânia a gravasse, e foi o que ela fez neste Aldir Blanc Inédito. Com o violão de 7 cordas de João Camarero e pela viola caipira de Paulo Dáfilin. Algumas composições vêm acompanhadas de curiosidade e coincidências. Em 1993, Aldir escreveu Provavelmente em Búzios, com melodia de Cristóvão Bastos, samba-canção interpretado por Dori Caymmi. Com Cristóvão Bastos, Aldir Blanc compôs Resposta ao Tempo, maior sucesso de Nana Caymmi.

Há 25 anos, Leila Pinheiro dedicou um álbum inteiro dedicado a canções assinadas por Aldir Blanc e Guinga. Guardou por este tempo todo, num cassete, uma composição que sobrou do disco, e agora é interpretada por ela e Guinga. Não deve ter sido fácil deixá-la de fora de Catavento e Girassol, a música é uma pérola. Chico Buarque participa da celebração como cantor, escolheu Vôo Cego, com melodia de Leandro Braga, que em a ver com o universo poético de Chico, na letra uma mulher faz revelações na primeira pessoa.

A variedade de temas expressa a obra de Aldir Blanc. Vai de comentário sobre a repressão durante o regime militar, em Ator de Pantomima, uma das cinco composições de Sueli Costa com Blanc que permanecia no ineditismo: “A farsa perante a corte/não disfarça o meu calvário/muito ao contrário o realça/ridiculariza a morte em cada ato/que o rei real realiza”. Ou de uma paráfrase/paródia, bem humorada, de Último Desejo, de Noel Rosa; “ “Aos canalhas que eu odeio/ diga que fui seu esteio/ que pensa em voltar pra mim/ mas se a figura me preza/ pragueje e diga que reza/ pro meu fim ser de indigente”. A música é cantada por Clarisse Grova, que enxerta trechos da melodia de Noel na interpretação.

Um álbum ao mesmo tempo prazeroso, de uma MPB como quase não se faz mais, e pesaroso, pela perda precoce de Aldir Blanc, e o tanto que ele ainda tinha a nos ofertar. Um trabalho cheio de canções candidatas a se tornarem clássicos, a exemplo de Acalento (inspirada no Acalanto de Dorival Caymmi), parceria com Moacyr Luz e João Bosco, cantada por Ana de Hollanda, Mulher Lunar, com Luiz Carlos da Vila e Moacyr Luz, que a interpreta.

Se abriu com a música certa, o álbum tem encerramento preciso, com um 3X4 do Brasil que Aldir Blanc deixou, fustigado pela virulência política e sanitária. Virulência é  o título da faixa,  com Alexandre Nero e Antônio Saraiva. Nero seria o último compositor com quem Aldir Blanc trabalharia, já com a pandemia deflagrada. Os versos cortantes, escritos no fio da navalha: “Um vírus nos virou do avesso/nos arremessou pra dentro/ um tiro nos atirou por entre a maré (…)/que falta me faz meus pais/ que falta nos faz a paz/que falta nos faz um país”. E quanta falta faz Aldir Blanc ao país.

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