Não se Assuste Pessoa – As Personas Políticas de Gal Costa e Elis na Ditadura Militar (Duas Vozes), livro do jornalista recifense Renato Contente, é um dos mais interessantes lançamentos recentes sobre a música popular brasileira. Por vários motivos. Um deles é que à medida que o tempo vai passando torna-se cada vez mais difusa a imagem da ditadura militar. Já há até versões, em livro a negando. A maioria a refuta, por razões óbvias, obstrução à democracia, prisões, torturas, mortes, cerceamento à liberdade de expressão. Mas não se deve pensar a ditadura militar como a de um país cartesiano. O Brasil é diferente. Boa parte da população passou indiferente por ela.
O golpe de 1964 aconteceu apenas 19 anos depois da redemocratização do país, em 1945, encerrando 15 anos de Getulio Vargas à frente do governo. Um militar, o marechal Eurico Gaspar Dutra, seria eleito presidente do pais redemocratizado. No entanto, ex-ditador voltaria ao poder, cinco anos depois, desta vez pelo voto popular. Portanto, para os mais velhos, o golpe militar tratava-se de outro governo de exceção, e a deposição de um presidente eleito, um episódio quase corriqueiro desde a velha república. Em 1955, por exemplo, o Brasil teve três presidentes, um deles, o mineiro Carlos Luz, só passou três dias no cargo. Sem esquecer que a crise provocada pela renúncia de Jânio Quadros era recente, um imbróglio que contribuiu para o golpe militar, mas que remontava ao tenentismo dos anos 30.
MPB
O estilo musical rotulado de MPB, música feita por gente da classe média, de nível universitário, consumida por pessoas do mesmo estrato social, surgiu no ano seguinte ao golpe, com o I Festival de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Excelsior, vencido por Edu Lobo e Vinicius de Moraes, com Arrastão, defendida por Elis Regina. Mesmo ano em que um grupo de intérpretes e compositores baianos se mudou de Salvador para o Rio, incentivados pelo meteórico sucesso popular da baiana Maria Bethânia, no musical Opinião. A instalação do regime militar coincidiu com uma forte efervescência em vários setores da cultura brasileira, com ênfase para a música popular.
A televisão estava ocupando o papel até então exercido pelo rádio. Os musicais ocupariam o horário nobre da programação das TV, o que se estendeu até o final da década de 60. A MPB já nasceu engajada. Boa parte dos que a faziam era de músicos que integraram o CPC da UNE (que surgiu por influência do MCP recifense). Elis Regina tornou-se a primeira grande estrela da era dos festivais. O sucesso com Arrastão a levou a ter um programa na TV, O Fino da Bossa. Em 1965 lançou três LPs, um solo, outro com Jair Rodrigues, e um com o Zimbo Trio (ela vinha de quatro LPs erráticos, lançados, pela CBS, entre 1961 e 1963). A maioria do repertório de O Fino do Fino, e Samba eu Canto Assim tinha a assinatura de autores contrários ao regime, Vinicius, Edu Lobo, Ruy Guerra, Carlos Lyra, Geraldo Vandré, Oduvaldo Viana Filho, ou Théo de Barros.
A MPB acabou com a era do rádio, e com a exigência de vozes privilegiadas, ou rostinhos bonitos. Os compositores deixaram de ser fornecedores de canção e passaram a também gravá-las. O que permaneceu dos velhos tempos foi a mulher como intérprete. Com honrosas exceções, até os anos 70, a MPB era criada por marmanjos. Ironicamente, havia mais compositoras na turma do iê-iê-iê (Helena dos Santos, Martinha, Elizabeth, ou Vanusa). Renato Contente destaca no início de Não se Assuste Pessoa, esta asserção, vivenciada por Gal Costa e Elis Regina: “A partir de motivações distintas, ambas vinculam fortemente suas imagens à resistência contra repressão através de discos, espetáculos e entrevistas que demarcava um posicionamento específico. Cada uma vinculada a uma rede de compositores, intelectuais, e produtores que correspondiam a uma determinada vertente ideológica, artista e comportamental da época (…)”. Vertentes que rumariam, no final da década, para outros destinos.
Como a grande maioria dos autores pendia para a esquerda e à oposição ao regime, suas intérpretes se enquadravam na mesma linha de pensamento, diferenciando-se no estilo do autor. Nara Leão, mesmo sem ser compositora (Além de letras de versões, assina uma música com Roberto Menescal), na MPB, foi quem primeiro externou opiniões contundentes contra a ditadura militar. Em 1966, pediu a devolução do governo aos civis, e a extinção das forças armadas, afirmando que não serviam para nada. Sofreu, claro, ameaças, temeu-se pela sua segurança, e fez-se uma corrente de pessoas influentes pedindo por ela.
O poeta Carlos Drummond de Andrade entrou na corrente solidária com um poema intitulado Apelo: “Meu honrado marechal/dirigente da nação/venho fazer-lhe um apelo/não prenda Nara Leão”, os versos iniciais As declarações de Nara a tornaram estigmatizada perante o regime, levando-a a sair do país em 1968.
Gal Costa, até a eclosão da Tropicália, era a discreta, Maria da Graça, ou Gracinha, a “João Gilberto de saia”, portanto, surpreendeu todo mundo ao defender Divino Maravilhoso, de Caetano e Gil, em 1968, no IV festival de MPB, da TV Record, pela interpretação agressiva, assim como as roupas psicodélicas, cabeleira Black power. Com o banimento de Caetano Veloso e Gilberto Gil para Londres, a Gracinha ficou definitivamente no passado, Gal Costa passou a ser a câmera de ressonância da música dos seus dois amigos, e de autores de estética assemelhada, feito Jards Macalé.
Maria Bethânia, mesmo gravando canções tropicalistas, não embarcou no movimento, certamente por ter cortado relações de amizade com o produtor Guilherme Araújo, o responsável, entre outras coisas, pelo visual do grupo baiano. Maria Bethânia contou em detalhes, numa entrevista a O Pasquim, a surra que deu em Araújo.
Enquanto analisa a trajetória musical e política das duas estrelas da MPB, a partir do final dos anos 60, entrelaçada com biografias sucintas das cantoras, Contente também mostra a relação de ambas com a imprensa, sobretudo pelo citado semanário O Pasquim, cuja importância e influência, de 1969 a meados dos anos 70, eram determinante para incensar ou destruir carreiras (chegou a ter uma tiragem de 200 mil exemplares). Foi o primeiro jornal no Brasil a dedicar uma página à contracultura, editada por Luiz Carlos Maciel, que se derramava em elogios a Gal Costa. Em suas páginas não se viam críticas aos cabelos desgrenhados, da cantora, seus berros em meio às canções que, em outras publicações, eram mais evidenciados do que a música. Isto fica bem acentuado no livro, que analisa também álbuns das fases de confronto de Gal e Elis, e as considerações da crítica sobre eles.
CEMITÉRIO
Mas é inegável que O Pasquim contribuiu muito para consolidar a carreira da cantora baiana, já que seus elogios ecoavam na imprensa do país inteiro. A saraivada de cartuns, notinhas, cumpriram um papel instrumental para detonar a carreira de Wilson Simonal. Sua redação era formada por esquerdistas de vários matizes, do humanista Millor Fernandes, ao xiita cartunista Henfil, o inventor da política do cancelamento no Brasil, décadas antes da Internet. Ele empreendeu uma perseguição ferrenha a Simonal. Criou um cemitério dos mortos vivos, e o personagem Caboco Mamadô. Nesse cemitério eram enterrados os que ficavam na mira da patrulha ideológica do cartunista. Elis Regina foi uma das presas de Henfil, que a enterrou duas vezes.
Ela não fazia por onde angariar simpatias da imprensa. Em pleno 1968, Elis tece críticas mordazes aos manifestos estudantis de maio daquele ano na França, de onde voltava depois de uma série de shows. Malhava constantemente o pessoal da Jovem Guarda, liderou a tristemente célebre passeata contra a guitarra elétrica (na verdade uma jogada marqueteira para levantar a audiência de seu programa na TV Record). Conservadora, demorou a aceitar o tropicalismo: “Eu fiquei furiosa, mas não era com o Caetano, realmente eu cheguei a conclusão de que era comigo, O negócio que ele estava fazendo estava mexendo demais comigo, eu fiquei muito agitada, não entendendo o que estava acontecendo (…), transcrição no livro de uma entrevista de Elis Regina a O Pasquim, em1969.
A gravação de um compacto com Pelé, com um repertório de sofríveis composições do Rei, a associou a seleção de 70, por sua vez, associada ao regime militar. A gota d’água para que Henfil atiçasse o Caboco Mamadô pra cima de Elis foi a participação dela na celebração do sesquicentenário da Independência, uma data amplamente explorada pelo regime. Elis já estava na mira do governo por declarações proferidas no exterior, por não aceitar cantar louvores à extensão dos limites de 12 para 200 milhas marítimas, orgulho dos militares, teve que prestar depoimento no Centro de Relações Públicas do Exército, foi enquadrada de tal forma que seria temerário se recusar a ser garota propaganda do Sesquicentenário.
Transcrevendo do livro: “Ela esteve no Rádio e na TV propagandeando o Sesquicentenário, cantando alegremente o hino nacional, e convocando toda a população brasileira a participar do encontro nacional cívico no feriado de 21 de abril. Participou de um compacto com Roberto Carlos e Pelé cantando o Hino Nacional. Como se não fosse o suficiente, cantou na abertura da III Olimpíada do Exército, em Porto Alegre, em 2 de maio de 1972. Com Elis estiveram Os Mutantes, Pery Ribeiro, Martinho da Vila, Jorge Ben, Jair Rodrigues, Trio Mocotó, Simonal, Luiz Gonzaga, Ronnie Von, Roberto e Erasmo Carlos. Mas Elis foi a mais patrulhada.
O Pasquim não apenas era radical, como parcial. Elis foi direto pro Cemitério dos Mortos Vivos, de Henfil, fazendo companhia a Pelé, Roberto Carlos, Marília Pêra, entre outras celebridades acusadas de cooptadas pelo regime. Um enterro de Henfil tinha uma enorme repercussão. O que Renato Contente aponta no seu livro, originado de uma tese de conclusão de curso (com o mínimo de citações, e notas de pé de página), são os papéis inversos que as duas grandes divas da MPB assumiram na década de 70. Aos poucos, Gal Costa foi afastando-se do udigrudi, do alternativo, para ser intérprete maior do cancioneiro popular brasileiro. Por sua vez, a partir deElis a cada álbum assumia deliberadamente o confronto com o regime, dando voz a canções de João Bosco e Aldir Blanc, Ivan Lins e Vitor Martins, ou Belchior. Gal e Elis, é o que conclui o livro, foram heroínas de um tempo de guerra, um tempo sem sol. Faces opostas da mesma moeda. Com a morte prematura de Elis, em 1982, a moeda até hoje preserva uma única face, não há como substituir a que se foi.
Entendi melhor a tese,o g1 tinha passado a impressão de que enquanto a Elis era alienada a Gal representava a voz da militância.E não é bem assim,80% do repertório da Elis de 1965 a 1968 é composto por músicas engajadas,como você enfatizou,e mesmo a ”fase-política” da Gal estava mais para o desbunde que o engajamento explícito.
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gal nunca foi politizada. O amigos eram. E ela cantava as canções dos amigos
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Sim,mas eu li tanto que os tropicalistas eram alienados que eu acabei acreditando,rs.
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