Crônicas do Recife
1
Eu, mais duas pessoas, querendo atravessar numa faixa de pedestres, na Ernesto de Paula Santos, em Boa Viagem. De repente, um carro pára, e o motorista acena pra gente passar. O outros carros, certamente com medo de que fosse um assalto ou afim, pararam também. Ficou aquele impasse. Os carros parados e nós idem. “Vai não, doido! Quer morrer, é?” gritou a moça pro prirralho que tava com ela. O primeiro carro que parou, precisou buzinar, e o motorista abaixar o vidro da janela, e acenar com a mão pra nos incentivar a atravessar. O menino passou correndo, a moça correndo atrás, o sujeito, o tal que falei lá em cima, tomou coragem e se dirigiu pra calçada oposta. Só então me arrisquei, mezzo cismado, mezzo surpreendido.
“Vou mandar rezar uma missa”, falou pra mim, o sujeito com as sacolas de compras. A missa, pelo simples fato de um motorista recifense ter respeitado pedestre na faixa do dito cujo. Um sinal de que, apesar dos apesares, bruxuleia uma luzinha no fim do túnel.
2
O recifense só é solidário na porta do carro aberta. Se um motorista daqui cruzar com um carro pegando fogo, ou fumaçando, ele só faz olhar. Agora não tranque corretamente a porta do carro. Enquanto a dita cuja não for fechada, todo motorista que passar por você vai alertar: “A porta do carro! Tá aberta! Duma feita, e eu já contei a coisa aqui neste cantinho, viajava eu num táxi, e este táxi tava com um porta defeituosa, não fechava direito. Da hora em que peguei o bicho até o fim da viagem, escutei uns duzentos: “A porta tá aberta!”.
A cada alerta o taxista explicava-se: “É assim mesmo, a bicha tá com defeito”. Quer dizer esta historinha foi mais ou menos bem-educada até ali no começo do Pina (eu vinha de Boa Viagem). Daí em diante o taxista perdeu a paciência. quando alguém avisava sobre a porta, ele gritava: “Que é que tem? A porta é minha!. Ou então: “Quer me dar uma porta nova?”
À medida que chegava perto do Centro, mais ele se irritava. Quando encontrou um motorista também esquentado rumaram pro bate-boca: “Tá incomodado? Se tiver, eu abro logo as quatro” E o outro motorista: “Deixe de ser ignorante, seu imbecil. Pegue esta tua porta e soca”. Não sei o desfecho da porta aberta, porque no Cais de Santa Rita pedi pra descer, que o negócio perigava acabar em tiro.
3
O Recife chegou perto de ser um burgo de modos civilizados! Se é que já não fomos civilizados. Nos jornais dos anos 30 e 40, havia uma seção que os de agora hão de achar que é uma menas a verdade do que vos tecla. Era a seção, no JC, “O que foi perdido em bondes e ônibus”. No dia 26 de janeiro de 1938 a seção listava o que se perdeu nos coletivos: No de Beberibe, uma bolsa com oito mil réis. No de Campo Grande, um vidro de remédio. No de Tejipió, um chapéu de feltro. No da Madalena, um par de luvas. No do Pina, um espelho. Por fim, mas não menos importante, no da Várzea, alguém perdeu o caneco (de louça).
Vejam vocês, prezadíssimos 320 leitores. Houve tempos no Recife em que um usuário de coletivo esquecia o caneco no bonde ou ônibus, outro usuário encontrava e entregava ao motorista, ou motorneiro, que, por sua vez, levava para a garagem da empresa, que por sua vez, avisava do achado aos jornais. E o caneco voltava ao legítimo dono. Ou seja, se não chegamos à civilização foi por uma peinha de nada. E aí faço um paralelo com aquela história dos dois mendigos, já contada aqui, duvido que alguém lembre. A dupla comentava sobre queijos. Um dizia que não havia igual ao queijo de Minas. O outro retrucava que bom mesmo era o parmesão. “Que parmesão que nada, bom pra caramba é queijo do reino!”. O segundo mendigo olhou com ar de incredulidade e deu o troco: “Eitcha. vai bem me dizer que tu já comeu queijo do reino!” E o outro: “Eu mesmo não, mas tenho um primo que uma vez quase comeu”. Enfim, pela supracitada coluna a gente não conheceu a civilização não. mas os nossos avós quase conheceram!
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