Marquei entrevista com Riachão no Hotel da Bahia. Dei sorte, ele iria participar da edição de 2008 do festival PercPan, em Salvador. Eis que chega Clementino Rodrigues, soteropolitano do Garcia, mais ou menos, o equivalente ao bairro de São José, no Recife. Uma figura. Acabara de chegar de Paris, onde fez algumas apresentações. Usava uma boina tipicamente parisiense, um japona vermelho, o cachecol, que se tornou sua marca registrada. Outra marca, anéis em todos os dedos. Durantes o papo, num verão brabo baiano, Riachão suou em bicas, mas manteve a elegância. Estava nesta época com 87 anos. O sambista, falecido em 2014, neste domingo, 21 de novembro, completaria cem anos.
Riachão é uma lenda e um mistério baiano. Lenda por ser último remanescente de uma geração de artistas do rádio, que deu compositores populares do nível de Batatinha e Gordurinha. Mistério porque só gravou dois discos, e é pouco badalado na Bahia, provavelmente porque nunca fez parte de panelinhas em Salvador, cidade pródiga em tais tipos de confrarias. Ou porque tem o hábito de revelar o que pensa (não esconde que não gosta do axé).
O autor de Cada macaco no seu galho, megasucesso de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 1972. Mais recentemente, Cássia Eller gravou Vai morar com o diabo. Sucessos, no entanto, que pouco alteraram sua rotina. Ele é um sambista inspirado, cantor que divide frases com a precisão de um Jackson do Pandeiro. Jackson foi, aliás, o primeiro cantor que o gravou. O samba Meu Patrão, em 1957, naturalmente pegando a parceria. Gravaria mais duas composições do baiano.
“A Rádio Sociedade era o que distraía a Boa Terra. Armava não sei quantos programas inclusive uma queima de Judas. Numa queima de Judas dessas estava a dupla Jackson e Almira, que já eram famosos no Rio, mas que eu não conhecia pessoalmente. Se tratava de uma passeata, que saía do Campo Grande para a Praça da Sé. Quando estou em cima do caminhão cantando Judas traidor com um parceiro (canta o samba inteiro, tamborilando com os dedos na mesa). Almira e Jackson iam no caminhão, aprenderam a música rápido, de repente só vejo os dois cantando em dueto com a gente. Veio daí nossa amizade. Ele gravou Meu patrão, Saia rota, e Judas traidor”, relembra Riachão, cujo apelido vem de um episódio que não gosta de recordar, uma refrega, de faca, com um colega de farra: “Hoje só quero saber de amor, alegria. Mas fui uma criança que brigou muito, que tinha um sangue assim quente. Fui preso, quase que mato um companheiro, não gosto nem de lembrar”, desconversa.
Ele começou, em 1944, a profissão de cantor (que dividia com a de alfaiate), na Rádio Sociedade da Bahia, cantando sucesso de Orlando Silva, Assis Valente, Ataulfo Alves, Wilson Batista. A composição lhe surgiu por acaso: “Uma certa vez eu vinha comprar material de alfaiate na rua da Misericórdia. Quando eu vou passando, vejo um pedacinho de revista, com os dizeres: ‘Se o Rio não escrever na Bahia ninguém canta’. Ora, eu só cantava as músicas do Rio. Quando li aquilo me bateu uma uma coisa, fiquei sentido, com aquilo no juízo, a tarde toda, a noite. Resultado: Jesus me manda o primeiro samba por causa disto (canta): ‘Eu sei que sou malandro sim/Conheço o meu proceder…’ Era assim o meu primeiro samba. Nunca foi gravado.
Composta nos anos 60, a inédita Cada macaco no seu galho foi descoberta por Caetano e Gil, acabados de voltar do exílio londrino. Quem indicou Riachão a eles foi um diretor do Bandeb (o Bandepe baiano), onde, graças a Antônio Carlos Magalhães, Riachão descolou um emprego de contínuo (conheciam-se do tempo em que ACM era jornalista). O doutor Gadelha, chefe do compositor, era pai de Dedé e Sandra, mulheres, respectivamente, de Caetano e Gil. “Ele deixou um recado com meus colegas para eu ir numa reunião com esses artistas, mas não me deram o recado e eu não compareci. No sábado, de Carnaval, eu tomei umas cachaças e fui na casa deles no Rio Vermelho. O resultado: sentou todo mundo numa almofadas na sala, e haja eu a cantar meus sambas. Daqui a pouco estou cantando Cada macaco no seu galho. E aí eles disseram: é essa malandro, não tem outra. E foi um grande sucesso”, conta Riachão, que estima já ter feito quinhentas músicas, a maioria porém esquecida: “Eu era pra botar no gravador, mas nunca tive essa idéia. Não gravei, saiu da mente. Nem sei como tenho tanta música para o show”.
Riachão foi gravado pouco, pelo Trio Nordestino, Osvaldo Oliveira (forrozeiro paraense que lançou Vai morar com o diabo), Cássia Eller, mas não fosse pela aposentadoria do banco hoje estaria em dificuldades financeiras: “É a minha sorte. Minha vida era brincar, cantar, não procurava conhecer as pessoas. Sempre fui assim”, diz o sambista (que faz um samba-de-roda do Recôncavo, mas com um jeito todo seu. Seus pais eram de Santo Amaro da Purificação)”.
HUMANENOCHUM
O centenário de Riachão é bem lembrado com o relançamento, nas plataformas de stream, do álbum Humanenochum, de 2000, seu terceiro disco, produzido por J.Velloso, e com convidados bem especiais. Um dele é Caetano Veloso, com quem faz um dueto em Vá Morar com O Diabo (sucesso com Cássia Eller), Claudete Macedo canta com ele Retrato da Bahia, Roque Ferreira participa de Quem é o Dono Dessa Mulher, Armandinho Macedo está em Choro nº1, Paquito e J.Velloso em Somente Ela, e Sabiá em Vida da Semana, Carlinhos Brown entra em Pitada de Tabaco, Tom Zé faz Cada Macaco no Seu Galho, e Dona Ivone Lara samba em Até Amanhã.
São 19 faixas, incluindo um pot-pourri, com as principais composições de Riachão, pelo menos as que foram gravadas, sem ficar de fora a impagável Baleia da Sé. Cada canção dele tinha uma história, era antes de tudo, um cronista do cotidiano. A baleia, que se afirma no release ser coisa de americano, na verdade era de um belga, que também a trouxe para o Recife, atravessando o sertão dirigindo um caminhão com a baleia na carroceria, e causando espanto aos sertanejos. O caminhão chegou a virar logo depois de Caruaru. A esquecida baleia Moby Dick continua viva no samba d e Riachão. Disco indicado para todas as idades. Diversão garantida ou seu dinheiro de volta.
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