Gutto Bellucco canta angústias e apreensões pandêmicas em Sopa de Morcego

O resumo do script é um clichê só. Comenta-se sobre uma doença, provocada por um vírus, que está matando pessoas na China. Pouco tempo depois, especula-se que o mal pode se espalhar pelo mundo. Mais uns dias, acredita-se que chegou ao Brasil. Na mesma semana, pessoas no país começam a ser acometidas da doença, covid-19, provocada pelo novo corona vírus, do qual até então se sabia muito pouco. Dizia-se que o hábito de tomar sopa de animais silvestres, exóticos, inclusive morcegos, fez com que chineses se contaminassem com o vírus, e o passassem à frente.

Nunca uma história tão trágica teve tantas trilhas sonoras. Centenas de discos mundo afora vêm sendo lançados desde os primeiros meses da pandemia, expressando a sensação de caminhar sobre o fio da navalha. Poucos discos desta safra pandêmica são tão diretos, escancaram o pavor, e a fratura exposta quanto Sopa de Morcego, do fluminense Guto Bellucco, que aterrissa nas plataformas digitais nessa sexta-feira, 26 de novembro.

Isolado em um apartamento, de subsolo, em um morro carioca, Bellucco ocupou o tempo ocioso fazendo música: “De repente, tive tempo de um modo inédito. As músicas foram chegando como os bichos que invadiam as cidades vazias. Nove das doze canções do disco brotaram nos três primeiros meses da pandemia”, revela. Um repertório que, feito escreveu Nelson Rodrigues de Terra em Transe, de Gláuber Rocha: “Um vômito triunfal”.  Guto Bellucco regurgitou triunfalmente a pletora de más sensações que o acometeram durante os primeiros meses da pandemia, em que até cientistas tateavam na penumbra para encontrar a luz no fim do túnel:

“Do violão saíam baladas e rocks com refrões inusitados. As melodias com letras pandêmicas se multiplicaram. Até duas músicas compostas na adolescência me pareceram atuais e ganharam nova roupagem”, complementa. Os título de algumas canções: Sombras, Sopa de Morcego, Dia da Pandemia, Música pra Quê, e Sino da Igreja. Esta última refere-se às badaladas do sino da Igreja do Largo das Neves, que o músico escutava no seu confinamento.

Sopa de Morcego é um disco conceitual. As canções são fotogramas sonoros de várias facetas da pandemia, as canções da peste. Mas apesar dos inúmeros tons de cinza, Bellucco unta cada composição de uma boa dose humor tragicômico: “Agora eu tenho sono/ e dores no corpo/ eu preciso de um fortificante/ eu preciso de uma sopa de morcego quente/agora eu tenho um mundo que eu não conhecia/agora até o Batman se esconde/em sua caverna fria/desconectou-se/e eu que já não sou nenhuma herói/sopa de morcego não me dói”.

Bellucco vê uma associação entre suas canções neste álbum com o manifesto da morbidez romântica que Jards Macalé e Waly Salomão arquitetaram nos idos de 1973. Dois momentos plúmbeos e de isolamentos, No primeiro na incomunicabilidade motivada pelo cerceamento à liberdade, na fase mais dura do regime militar. Mas mesmo assim se achava sempre um jeito de driblar a fera. O tempo de Sopa de Morcego é mais complexo, porque o inimigo é, literalmente, invisível. O morcego, metafórico, de Macalé (com Capinam), estava visível na porta principal, o morcego, da pandemia, é real, e pode-se estar à espreita em todas as portas, portões e portais.

Violão, guitarra, viola caipira, baixo e teclados, os instrumentos tocados por Guto Bellucco no disco. Mestre em Teoria Literária (o que explica as letras bem resolvidas), ele integrou as bandas Cobras & Lagartos, Caô de Raiz, e a dupla Baderna & Mollusco. Tocou em muitos lugares entre Niterói e Rio, e lançou um EP, Corneta, em 2015, e o primeiro álbum, em 2017, O Jovem Augosto Mollusco.

Sopa de Morcego traz influências assumidas dos Beatles, sobretudo John Lennon, parte das canções de Bellucco lembram o clima do Álbum Branco, os trechos mais acústicos. As faixas são curtas, a maioria de dois minutos e segundos.  A mais longa, pouco mais dos três minutos, é Dia de Pandemia, a mais curta, Cup of Tea tem um minuto.

Claro, é um disco que incomoda, até porque, apesar de o vírus continuar circulando, as lembranças são seletivas, e as pessoas já arquivaram os maus momentos nos desvãos da memória. Porém a agonia e mal estar da pior fase são trazidos de volta na música de Guto Bellucco: “Mais um dia de pandemia/ mais um dia de agonia/mais um dia de pandemia/mais um dia sem orgia/ o que você vai fazer agora/ do seu mês, do seu dia/ o que você vai fazer agora/ nesse dia de pandemia (…) não tem remédio não tem vacina, nem cloroquina que acaba tua sina”, versos da citada Dia de Pandemia, com jeito de Heroin, do Velvet Underground.

Um disco para o qual se aplica uma das definições do blues, quase seja: “O objetivo do blues não é afastar a tristeza das pessoas, mas fazer com que fiquem ainda mais tristes”. Se bem, que a faixa final é instrumental, Música para Dormir, um acalanto ao violão.

Sopa de Morcego foi produzido por Leandro Salgueirinho. A arte da capa é da pernambucana Juliana Notari, que polemizou em janeiro de 2021, com Diva, imagem de uma vulva de 33 metros, exposta na Usina de Arte, de Água Preta, Zona da Mata de Pernambuco.   

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