Os limites entre nichos musicais estanques foram pras cucuias já tem um bom tempo. A música que hoje é rotulada de clássica, ou erudita, de Beethoven, Bach, Mozart, pra citar medalhões era o popular de então, um pouco mais sofisticado, porque havia a música feita pelo povão, as manifestações musicais nas áreas rurais. Era a música ligeira, para puro entretenimento, que se cantava em coro, e se dançava nas ruas e tabernas. Mais tarde começou a ser vendida em partituras, e disseminada entre pianistas domésticos. Assim foi se abrindo o fosso entre esse estilo musical e o da música para concerto.
No final do século 20, este fosso foi diminuindo de largura, e hoje sinfônicas tocam repertório pop, enquanto artistas pop, ou de rock executam peças ditas clássicas. Reprise, o novo disco do americano Moby, há 30 anos percorrendo os caminhos da música eletrônica, está disponível, em lojas físicas e plataformas de stream, por um ilustre selo da música de concerto, o Deutsche Grammophon. Com a Budapest Art Orchestra, Moby repassa suas composições mais conhecidas, ou que quer que sejam mais conhecidas, em novos arranjos para instrumentos acústicos e orquestra.
Os convidados, e não são poucos, pertencem a áreas musicais e épocas diversas, do veterano Kris Kristofferson, 84 anos, ao relativamente novo jazzman Gregory Porter, 49 anos, ou a cantora de folk blues Amythyst Klah, 34 anos. Moby faz uma inovação na velha prática da compilação, não apenas regravou suas composições, como lhes deu outro conceito. A maioria delas no original tem a eletrônica por base, e as pistas por objetivo. Em Reprise os temas são orgânicos, alguns ganham grandiloqüência, pelo tratamento orquestral, mas ratificam que a música de Moby é consistente, independente da roupagem.
Tocar com uma orquestra importante é algo que se poderia esperar de Moby. Em 1999, quando lançou Play, um disco feito sem pretensões, em equipamentos precários, morava então num galpão que invadiu, na banda podre de Nova Iorque. O álbum vendeu 20 milhões de cópias, várias faixas foram sucesso. Uma história que é contada sem dourar a pílula em dois livros, o da banda podre é o primeiro, Porcelain (2016). Why Does My Heart Feels So Bad? A faixas mais bem sucedida de Play é interpretada por ele, com Apollo Jane, Mindy Jones, Deitrick Hadddon, e ganha mais força, embora continue com a mesma melancolia. Mark Lanegan participou de The Lonely Night, e volta a participar na versão de Reprise, com Kris Kristofferson.
O álbum tem uma única música que não foi composta por Moby (só ou com parceiros), Heroes, de David Bowie (1977). É um dos destaques de Reprise, embora seja a primeira gravação em disco desta canção clássica de Bowie, a quem Moby homenageia. David Bowie foi ídolo de adolescência de Moby, e no início dos anos 2000 tornaram-se amigos. Num vídeo em que explica a inclusão de Heroes, e amizade com Bowie (https://www.youtube.com/watch?v=FUJmnJhLpUQ), Moby relembra uma visita do cantor inglês à sua casa, os dois no sofá, de repente, fizeram um dueto em Heroes, que marcou a convivência entre ele e David Bowie. No disco quem a faixa tem a voz de Mindy Jones (da banda de Moby), que imprime uma fragilidade proposital a interpretação.
Reprise foi lançado em maio, ainda sob a pressão da pandemia, e só agora tem recebido mais atenção da imprensa. Merecida. Uma oportunidade de reavaliar a música de Moby, que mostra que uma obra não é estática, pode ser readaptada a outros tempos, ou outro momento do artista.
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