Núbia Lafayette a matriz da sofrência brasileira

“Uma espécie de Anísio Silva de saias, esta senhora só grava tragédias, mesmo quando os compositores são bons, ela escolhe o pior de suas músicas para gravar”, definição da cantora Núbia Lafayette por Sérgio Porto, crítico de música, apresentador, cronista (com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta), no jornal carioca Tribuna da Imprensa, em 1961. Mas Sérgio Porto foi um intelectual, assumidamente elitista. Na mesma coluna em que comenta sobre Núbia Lafayette, ele arrasou um disco do americano Sam Cooke, uma das mais elogiadas vozes de soul e gospel. Núbia cantava um tipo de música que acertava em cheio os corações dos brasileiros, bem mais das brasileiras.

Idenilde Araújo Alves da Costa, nascida em Assu –RN, mas desde os três anos no Rio, mudou o nome para o mais sonoro Núbia Lafayette, quando começou a gravar pela RCA, onde sua carreira decolou há 60 anos. Ela gravou o primeiro 78 rotações em 1959, pela Polydor, como Nilde Araújo. Em 1960, atraiu a atenção de Adelino Moreira um craque na dor de cotovelo exacerbada.  Ele fez um samba-canção para idenilde, a levou para conhecer Paulo Rocco, chefão da RCA, que a contratou. Devolvi, de Adelino Moreira, fez tanto sucesso que Núbia a cantou em shows até o final da vida.

Sérgio Porto não estava de todo errado em seu reducionismo. Núbia geralmente cantava tragédias, não as grandes tragédias humanas, shakespeareana, mas as pequenas e doloridas tragédias pessoais. Os exegetas do estilo sertanejo adjetivado de “sofrência”, de que Marília Mendonça foi o nome mais popular, provavelmente desconhecem a música de Núbia Lafayette, origem do DNA de todas as estrelas da sofrência. “Devolvi a aliança/e a medalha de ouro/e tudo o que ele me presenteou/devolvi suas cartas amorosas/e as juras mentirosas/com que ele me enganou”, versos de Devolvi, com o detalhe da “aliança”. As moças de então eram sérias , namorava, noivavam e casavam. A aliança de compromisso recebiam quando se tornava noiva.

Pode-se determinar como marco zero da carreira de Núbia Lafayette o ano de 1961, quando estreou em LP, com Solidão (Adelino Moreira). Não por acaso, a chamavam de Nelson Gonçalves de Saias. Ambos eram os prediletos de Adelino que escrevia os sambas canção masculinos para Nelson, cujas letras tinham por tema conquistas, pedidos de perdão, novos amores, arroubos machistas. Para ela, eram melancólicas despedidas, traições, compaixão pelo amante mal sucedido ao trocar de amores.

Mulheres do país inteiro, dos subúrbios das grandes cidades, do interior, se identificavam com Núbia. Ela cantava o cotidiano de boa parte de um enorme contingente feminino de extrema passividade em relação ao companheiro. Por estripulias que aprontasse ela, quase sempre “do lar” esperava que o amado voltasse para que continuassem a vida juntos. Um ótimo exemplo ao último tema citado é Prece à Lua (Adelino Moreira), que merece a letra na íntegra:

Oh! Lua/Oh! Soberana de prata/Oh! Deusa da serenata/Ornamento do sem fim/Guia o meu amor seresteiro/Coração aventureiro/Até que volte pra mim/

Oh! Lua/Conta-lhe toda a verdade/Fala da minha saudade/Deusa do céu não esquece/
Diz-lhe que eu estou apaixonada/De olhar preso na estrada/Para ver se ele aparece
Diz-lhe que o meu amor continua/Que eu moro na mesma rua/E que quando ele voltar/
Ouvirá dos lábios meus/Apesar da minha dor/Voltaste, graças a Deus/Nunca mais partirás meu amor”

O sucesso popular acompanhou Núbia Lafayette até 1966, quando o rolo compressor chamado iê-iê-iê passou por cima dos intérpretes da música rotulada de cafona (e de outras, entre estas o forró). Ela ficou de 1965 a 1970 sem lançar LP anual, mudou inclusive de gravadora, saiu da RCA para a Phillips. Se deixara de frequentar as paradas, e aparecer menos na TV, Núbia emplacou sucessos suficientes para circular pelo Brasil fazendo show, sobretudo pelo Nordeste, que continuou fiel ao estilo. Emplacou até 1965, dez sucessos assinados por Adelino Moreira. Vinha com bastante frequência ao Recife, onde tocava muito. No carnaval de 1964, uma das músicas mais tocadas nos clubes foi o samba Madrugada e Amor (José Messias), que deu nome ao LP de Núbia naquele ano.

Núbia Lafayette, mesmo sem fazer mais sucesso, continuou a gravar uma média de um álbum por ano. Nos anos 70 lançou nove discos pela CBS, onde comemorou duas décadas de carreira, em 1981, com o álbum Os Vinte Anos Artísticos de Núbia Lafayette. Somente gravaria quatro anos depois, Por Amar Demais, coincidentemente pela RCA, a gravadora na qual sua carreira decolou, e pela qual fechou a discografia (ainda gravaria um LP pela CBS, O Brasil Sentimental, de um projeto chamado Academia Brasileira de Música Vol.10)

O carisma, o timbre  de voz único, o repertório recheado de Adelino Moreira, o português que traduzia como poucos a alma romântica brasileira, fizeram Núbia Lafayette ganhar o status de cult. Alcione a citava como uma de suas maiores influências, revelou que começou a cantar em São Luis (MA) a imitando. Alceu Valença, em entrevista a O Pasquim, nos anos 70, confessou influências de Núbia Lafayette (que os entrevistadores desconhecia). Provavelmente os jovens sertanejos que fazem a sofrência não escutaram Núbia. Se tivessem escutado certamente suas canções seriam mais melodiosas, e as letras menos repetitivas, e das quais escorreriam mais lágrimas do que birita.

7 comentários em “Núbia Lafayette a matriz da sofrência brasileira

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  1. Teles,

    Núbia Lafayette, a matriz da sofrência brasileira está excelente. Um mergulho certeiro na obra de Núbia Lafayette, que tinha talento para fazer o que fez, com a ajuda do magno compositor português Adelino Moreira.

    Infelizmente Sergio Porto se equivocou quando lhe fez aquelas críticas intempestivas.

    Falando em Adelino Moreira, há alguma biografia dele no mercado que mereça ser lida? Se houver, me indica.

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      1. Teles, bom dia,

        Qual o link eu possa acessar para visualizar e ler a matéria sobre os 100 anos do compositor Adelino Moreira escrita por tu?

        Outra: sabes me informar se existe algum livro publicado no Brasil comentando sobre as músicas de cantores famosos que foram “comprositadas”? Que os compositores de recursos “compravam” dos compositores anônimos e lançavam como de sua autoria?

        Comprei teu livro “LÁ VÊM OS VIOLADOS” – Os 50 anos da trajetória artística do Quinteto Violado”, editado pela Cepe.

        Depois eu te levo para autografar, mas, onde eu posso te encontrar?

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  2. Pô meu caro amigo Teles, esta matéria me levou às lágrimas. Minha mãe, solteira, desde meus 5 anos, a ouvia muito na Rádio Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco falando para o mundo, em revezamento constante com Angela Maria!

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