Allen Klein, personagem ausente no doc The Beatles: Get Back, completaria 90 anos neste dezembro de 2021.

“Pago 17 mil dólares pelos seus direitos no catálogo dos Animals”, gritou um homem para um rapaz que caminhava por uma calçada de uma rua em Manhattan, Nova Iorque. O ano, 1966, o rapaz, Eric Burdon, vocalista do grupo inglês The Animals. Pela janela da limusine, o homem estendia-lhe um contrato e uma caneta. Dirigia tão devagar que daria para Burdon assinar sem parar de andar. Não parou. Sabia de quem se tratava. O nome do sujeito: Allen Klein, produtor que se tornou conhecido por trabalhar com Sam Cooke, uma das grandes vozes do soul. Sua chave pra abrir todas as portas: dinheiro.

Nesse sábado, 18 de dezembro, Allen Klein completaria 90 anos (faleceu em 2009, aos 78 anos), uma data redonda pouco lembrada pela imprensa. Filho de um açougueiro judeu, imigrante húngaro, Allen Klein entrou no negócio da música como contador. Adotando o estilo casca grossa, ele elevava a renda de todos os artistas para os quais trabalhou. Bobby Vinton, Bob Darin e Sam Cooke, alguns desses.

 No documentário The Beatles: Get Back, de Peter Jackson, a ausência de Allen Klein é uma lacuna que dificulta entender o clima hostil que paira entre Paul McCartney e John Lennon. Klein é citado no primeiro episódio, quando John Lennon, em conversa com George, se derrama em elogios ao americano, que estava começando a trabalhar com o grupo. A decisão de lhe entregar as finanças da banda veio de Lennon, baseado no que Klein fez para os Rolling Stones, cujo contrato foi renegociado com a Decca, com os integrantes embolsando 2,5 milhões de dólares. Nessa época os Beatles ganhavam um penny por disco vendido (para dividir por quatro). Fora do estúdio, Allen Klein era onipresente no cotidiano do quarteto. Instalara-se no escritório da Apple como se presidisse a empresa. Deu uma vassourada no corpo funcional, sem poupar parte dos amigos que os quatro beatles trouxeram de Liverpool. Tampouco abriu brecha para que Paul McCartney, que se pretendia a empresário da banda, interviesse nas finanças.

 Se alguém foi responsável pelo fim dos Beatles, ou por tê-lo antecipado, chama-se Allen Klein. Em sua era o mais voraz empresário da música pop. As editoras musicais e gravadoras o detestavam porque conseguia extrair o máximo delas. E aprendeu também que a maneira mais fácil de enriquecer no merca do estava em comprar editoras musicais. Adquiriu catálogos inteiros, incluindo o dos Rolling Stones, de quem foi empresário até 1970, quando a banda o dispensou, alegando ter sido relagada a segundo plano, e dedicando-se aos Beatles full time. Allen Klein deixou os Rolling Stones, porém com o controle de todos os discos da banda. Infernizaria a vida do grupo por muitos anos, sobretudo jogando no mercado diversas coletâneas, à revelia de Jagger & Richards.

 Klein se mudou para Londres na década de 60. Em pouco tempo tinha em suas mãos The Who, The Kinks, The Dave Clark Five, Lulu, Herman’s Hermits, The Rolling Stones e The Beatles. Ou seja, era o sujeito mais poderoso do mundo no negócio da música pop. Chegou ao quarteto de Liverpool mostrando serviço, aplicando um golpe de mestre. O grupo renovara contrato com a EMI em 1967. Klein pediu a papelada para consultá-lo. Uma das cláusulas exigia que a gravadora, no período do contrato, teria que receber 68 canções inéditas. Allen constatou que a EMI já recebera as 68 canções. O presidente da gravadora alegou que no contrato não se dizia que seriam apenas este número de títulos, mas a quantidade mínima. Allen Klein não pretendia brigar judicialmente com um dos executivos mais importantes da indústria fonográfica do planeta. Pediu que lhe fosse permitido renegociar o contrato com a Capitol, a subsidiária da EMI nos Estados e Canadá. Mercados mais lucrativos do que o europeu. Responsável por 40% das vendas dos discos dos Beatles.

 Conseguiu renegociar o contrato com um percentual de 5,5% a mais. Em compensação, 20% dos royalties do grupo iriam para a ABKCO (iniciais de Allen e Betty Klein Company), mais 25% da venda de merchandising. E ainda: os pagamentos para a Apple seriam feitos através da empresa de Klein. Para os novos contratados o intrépido Klein caíra do céu. O mercado pop inglês explodiu na esteira dos Beatles, e tão rapidamente que, no final da década, ninguém sabia ainda lidar muito bem com ele comercialmente. The Faces, uma das bandas mais bem sucedidas da  Inglaterra nos palcos, continuava ganhando salário do seu empresário, 20 libras por semana.

Depois do álbum Abbey Road, John, George e Ringo, mal se viam. Paul McCartney, peremptoriamente contrário a Allen Klein gerindo os negócios do grupo, sumiu. O que suscitou a mais famosa das fake news, a de que ele tinha morrido. Paul se abrigou com Linda e Heather, a filha dela, numa propriedade que possuía na Escócia. Onde recuperou canções que sobraram de discos dos Beatles, e compôs várias novas. O impaciente Allen Klein sabendo que não iria ter novidades da banda por algum tempo ou, talvez, nunca mais, resolveu retomar o abortado projeto Get Back. Pretendia fazer um disco e dois documentários. Um das gravações realizadas em janeiro de 1979, e um segundo, com o título provisório de The Long and Winding Road, focalizando as viagens que os quatro músicos empreenderam desde o final da década. Convidou Phil Spector, com anuência de Lennon, sem consultar Paul McCartney, para selecionar, de dezenas de horas de gravações, o repertório de um álbum que seria lançado com o documentário homônimo, Let it Be, ambos.

Spector estava fora de moda. Afastou-se dos estúdios, em 1966, depois de gastar dinheiro e neurônios produzindo River Deep Mountain High, para o casal Ike & Tina Turner, a maior flopada de sua carreira (a canção estourou no Brasil, porém na versão de Luiz Keller, cantada por Wanderléa, com o título de Gostaria de Saber. A original é de Ellie Greenwich, Jeff Barry e Phil Spector). A primeira canção que escolheu, em 23 de março de 1970, foi I Me Mine, de George, gravada por ele, Ringo e Paul (John estava na Dinamarca, com Yoko). O original durava pouco mais de um minuto. Spector estendeu a música, repetindo o refrão. No estúdio mandava ele, sempre com um tresoitão sobre a mesa de controle.

Num estúdio vizinho, em Abbey Road, naquele mesmo dia, um certo Billy Martin, finalizava seu disco solo. Billy Martin era o pseudônimo sob o qual Paul McCartney agendava o estúdio. Ele rompeu relações com Allen Klein desde o dia em que ligou para o escritório da Apple, a fim de falar com o contador.  Klein mandou a secretária dizer que estava ocupado, e que ligaria depois. McCartney nunca mais falou com Allen. Passou a ser representado por seu sogro, John Eastman, advogado especializado na área musical, que conhecia muito bem o empresário e seus métodos pouco convencionais.

Em 6 de abril, o compacto com Let it Be, com You Know My Name (Look Up The Number), no lado B, escalou os primeiros lugares das paradas nos dois lados do Atlântico. O álbum Let it Be seria lançado alguns dias mais tarde. Enquanto Paul pretendia lançar, uma semana antes, seu álbum solo McCartney, o disco em que tocara todos os instrumentos, e quase todas as vozes, (Linda faz alguns backing vocal). McCartney antecipou cópias do disco para jornalistas de Londres.

Em cem álbuns para divulgação foi inserido um encarte em que Paul era entrevistador e entrevistado (com uma mãozinha do assessor de imprensa Derek Taylor). Uma das perguntas: “Lennon & McCartney voltarão um dia a ser uma dupla ativa como compositores?”. A resposta: “Não”. O jornalista Ray Connolym, que já entrevistara a banda várias vezes, não se espantou com aquela auto-entrevista em que Paul oficializava sua saída dos Beatles. Em setembro de 1969, ele viajou para o Canadá para cobrir a apresentação de John Lennon, com a Plastic Ono Band, em Toronto. E Lennon lhe revelou que estava deixando o grupo, mas que esperasse até que ele autorizasse a soltar a notícia. Allen Klein estava tentando a renegociação do contrato dos Beatles com a EMI. Quando John lhe contou, antes do show, que ia sair do grupo, Klein pediu que só divulgasse depois do acerto com a gravadora. Sem John nos Beatles não haveria, obviamente, negócio algum.

Com McCartney irredutível em não aceitar lançar seu disco solo depois de Let it Be, Allen Klein agiu nos bastidores para que George, John e Ringo, em comum acordo com ele, encostassem amigona parede. Quando McCartney revelou que iria falar com Clive Davis para lançar o álbum pela CBS (da qual Davis era presidente), Harrison engrossou a voz (não era tão pacato o quanto sua transparecia). Gritou que McCartney poderia lançar quando quisesse, mas “Somente pela porra da Apple”. O álbum e o filme Let it Be foram pivôs do imbróglio. McCartney imaginou-se num complô arquitetado pelos três beatles e o empresário, o que não deixava de ser verdade. Klein, por exemplo, quebrou a tradição dos compactos dos Beatles sempre divididos entre Lennon e McCartney. Foi ideia dele colocar George Harrison, pela primeira vez, com um lado A de um single do grupo (com Come Together no B). Uma ideia acertada. Something foi também o única canção de Harrison, com os Beatles a alcançar o topo das paradas inglesas e americanas (de vários países ao redor do mundo).

Sem material novo do grupo, Klein articulou a coletânea Hey Jude, lançada nos EUA (somente teve edição inglesa em 1979), e países da América. Com exceção de Can’t Buy me Love e I Should Have Known Better (da trilha de A Hard Day’s Night), as demais faixas foram lançadas originalmente em compactos. A regra da prolífica banda era não usar música já lançada em LP, o que faz de Hey Jude uma de suas melhores coletâneas. A foto da capa poderia ser a da lápide do grupo. Os quatro à frente de uma porta, da casa de campo de Lennon, todos de rostos fechados, olhando para o horizonte, Visivelmente desconfortáveis.

O pessoal do marketing da EMI, ao ser notificado de que precisava criar material de divulgação para Let it be, não tinha ideia do seu conteúdo. Sabiam apenas da canção Let it Be, lançada em compacto. Klein pediu que fossem prensadas três milhões de cópias do LP. A estas alturas, Paul McCartney manteve a data de lançamento do seu disco, que chegou às lojas dias antes do álbum da banda. Ele já havia ligado para Lennon confirmando sua saída do grupo. Para Paul, Beatles era página virada. Agora era tocar a carreira solo.

 Mas aí recebeu um acetato enviado por Phil Spector com a sua versão de The Long and Winding Road. Paul ligou para uma secretária da Apple e ditou uma carta para Allen Klein. Exigia que dali em diante ninguém podia mexer em nada de nenhuma música sua. E exigia que fosse retirado tudo o que se acrescentou à The Long and Winding Road. Terminava com uma ameaça: “Jamais repita isto”. Klein e Phil Spector o ignoraram. A versão da canção, com orquestra e coro, foi um dos maiores sucessos do álbum Let it Be.

Curioso como tudo na trajetória dos Beatles assemelha-se um jogo de armar com todas as peças a mão para serem utilizadas. Em 9 de fevereiro de 1964, o grupo foi impulsionado para o sucesso nos EUA com a primeira apresentação no programa de Ed Sullivan. Em 1ª de março de 1970, os Beatles voltariam ao Ed Sullivan, mas de forma diferente. O programa teria uma hora de música do Fab Four, porém interpretada por nomes do mainstream, Dionne Warwick, Peggy Lee, Eydie Gorme. The Beatles esteve presente em vídeos, de Two of Us, e Let it Be.

 Mas o funeral dos Fab Four aconteceu antes do fim oficial do quarteto, de forma melancólica. Pouco depois do programa de Ed Sullivan, o fã clube do grupo em Chicago reuniu-se num salão de um hotel às margens do rio que corta a cidade. Em relação a reuniões anteriores, havia pouca gente, 125 pessoas, a maioria de mulheres. Trocaram lembranças, discos, memorabilia. Houve uma curta discussão sobre a recente foto de John e Yoko com o que chamaram de “corte de cabelos de campo de concentração”. No final o presidente do fã clube, Vikki Paradiso, 24 anos, anunciou que não haveria outro encontro. Naquela semana, em Londres, o fanzine Beatles Book, que chegou a ter tiragem de 300 mil exemplares mensais, e  caíra para 26 mil, saiu de circulação. Como aconteceria com os Beatles menos de dois meses depois.

A biografia de Allen Klein pode ser assim resumida, ele teve em em mãos The Rolling Stones e The Beatles, foi dispensado e processado pelo Rolling Stones e integrantes dos Beatles, e preso por fraudar o imposto de renda americano.

Dois episódios pouco conhecido de Allen Klein

Quando George Harrison estourou mundo afora com My Sweet Lord, foi processado pelo editora que mantinha os direitos de He’s So Fine (Ronnie Mack), sucesso com The Chiffons, em 1963. A canção de Harrison era praticamente a mesma, com outra letra. Na época suas finanças, assim como as de John Lennon e Ringo Starr, era gerenciada por Allen Klein. George Harrison foi aconselhado por Klein a comprar a música da editora Bright Tunes. O caso continuou nos tribunais. Allen Klein, que se apartou dos ex-beatles em 1973, comprou a editora que não vinha bem das pernas. Depois de muitos imbroglios, um juiz reconheceu a falcatrua de Allen Klein e ordenou que ele vendesse para Harrison a Bright Tunes pelo mesmo valor que pagou, 587 mil dólares. Um curioso caso de alguém acusado de plágio se tornar dono da canção que teria copiado. Klein recorreu. A pendenga estendeu-se até os anos 90.

Quando John Lennon foi assassinado, Allen Klein não foi prestar condolências à viuva Yoko Ono, porque tinha um casamento para ir. Dias depois apareceu no edifício Dakota. Lamentou pela morte de Lennon. Mal terminou de falar, Yoko foi curta e grossa: “Você deveria ter morrido em lugar dele”.

A foto que ilustra a postagem é de 20 de setembro de 1969, supostamente quando Allen Klein e os Beatles assinaram o contrato para ele gerenciar as finanças do grupo. Porém, foi pose para a imprensa. George Harrison tinha viajado para Liverpool (Yoko o substitui), e McCartney, numa sequencia, dessa sessão, aparece de polegar para baixo, enquanto os demais estão de polegar pra cima

2 comentários em “Allen Klein, personagem ausente no doc The Beatles: Get Back, completaria 90 anos neste dezembro de 2021.

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