Mordaça – História de Música e Censura em Tempos Autoritários, de João Pimentel e Zé McGill (Editora Sonora), minha ultima leitura em 2021. Um dos melhores que já li sobre a censura à música neste país, enfatizando os anos 60 e 70, mas chegando aos tempos atuais. Como quase todos, não se toca na censura da ditadura Getúlio Vargas, que foi brutal, e esquecida. Como quase todos os livros sobre censura, nele não entra o forró.
O livro de Paulo César Araujo, Eu Não Sou Cachorro Não fez bastante sucesso não apenas pelas histórias bem contadas, mas por lembrar que a tesoura do Departamento de Censura Federal não picotou apenas letras de MPB universitária, os artistas povão também estiveram na sua mira. Uma obviedade ululante. Todas as letras para serem gravadas obrigatoriamente precisavam ser submetidas aos censores. Os forrozeiros não eram exceção a esta regra. Os autores tiveram letras vetadas, ou foram obrigados a fazer modificações, mas eram ignorados pela imprensa.
Quando a censura recrudesceu, depois do AI-5, o forró já não era há muito tempo a dança da moda no Sudeste. Como ainda falava da vida no interior, de amores brejeiros, geralmente lúdica, não preocupava os censores. Além do que empregavam termos regionais, que os “sudestinos” não entendiam. Quando o forró enveredou pelo duplo sentido a censura sinalizou vermelho, mas deixava passar muita coisa, por ignorar o que fosse. É o caso de Severina Xique-Xique, de João Gonçalves, megasucesso com Genival Lacerda (que ganhou parcerias nessa e noutras composições de Gonçalves).
“Ele tá de olho, na butique dela” para quem não é pernambucano, paraibano, e de estados próximos, é só engraçada. Mas “butique” soa muito próximo de “botico”, termo que significa “ânus” em grande parte do Nordeste. João Gonçalves foi protagonista de um dos mais malucos casos de censura pessoal. Ele se tornou cantor, e emplacou um grande sucesso, pela Tapecar, com Pescaria em Boqueirão (com Messias Holanda), cujo refrão é o seguinte: “Ô lapa de minhoca/eita que minhocão/com uma minhoca dessas se pega até tubarão”.
A música passou pela censura, mas não por um delegado da Polícia Federal em João Pessoa. Depois de um show na festa de Nossa Senhora das Neves, na capital paraibana, ele foi intimado a comparecer no dia seguinte na PF. Foi e levou a maior bronca por ter cantado a música proibida. Rolou uma conversa comprida, até que João convenceu o delegado de que cantou porque não sabia que estava proibida. Na Paraíba estava, mas porque o delegado queria.
Dias depois ele fazia show em Cajazeiras, interior do estado O povo pedia Pescaria em Boqueirão. João mandou o conjunto tocar a introdução e começar. Deixou que o povo cantasse, e só mexeu com os lábios. O delegado estava por lá e quis enquadrá-lo por ter cantado “A Minhoca”, como o rojão era mais conhecido. Ele alegou que não havia cantado. Quem cantou foi o povo. Em suma. Ficou detido no hotel, até que o delegado recebesse a fita da gravação do show. Se escutasse a voz de João ele estava encrencado. Foi liberado. Chegou ao ponto de ele ser proibido de fazer shows na Paraíba.
João teve várias músicas proibidas, boa parte denunciada à PF Brasília pelas superintendência de estados nordestinos (sobretudo Pernambuco), e por cidadãos que se sentiam ofendidos pelas letras de rojões feito Mungunzá de Coco: “Pra todo mundo que chega/ele grita, tá raspado/tá raspado, tá raspado”, o “raspado” no caso era o coco, usado pra preparar o mungunzá. Esta foi proibida em lugares públicos, incluindo lojas de disco. A música é faixa do LP Vamos Mariquinha, de Genival Lacerda (1976). João Gonçalves é o grande ausente da história da censura musical no Brasil. Ele morreu em junho de 2021, de um infarto, aos 85 anos.
Parte da história da censura ao forró foi contada em O Fole Roncou – Uma História do Forró, de Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues (Zahar). Entrevistei João Gonçalves algumas vezes. Ele nunca falou muito sobre censura, nem se indignava por ser proibido no seu estado de forma tão arbitrária. Mais chocante foi ter disco quebrado no programa de Flavio Cavalcanti, o que era mais jogo de cena do apresentador. Flavio chegou a quebrar um disco de Jackson do Pandeiro condenando uma música que ele nunca gravou.
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