Um e-mail de assessoria, o novo single de Simone & Simaria. Rapariga, o título. No início dos anos 90, não sei se em todo Nordeste, mas em Pernambuco, rapariga era uma expressão bem baixo nível. Chamar alguém de “puta”, ou “quenga” seria menos indelicado. É que rapariga saíra de moda há anos nas cidades maiores. Nos anos 80, eu e dois cartunistas editávamos o Papa-Figo, um jornal escrachado, politicamente incorreto, tipo Caceta & Planeta (surgimos na mesma época). Nos meus textos comecei a resgatar termos antigos, “rapariga” foi um desses. Não sei se por causa do jornal, “rapariga” voltou com tudo, no início dito como brincadeira, uma expressão das antigas. Os bregas da periferia do Recife começaram a usar em suas letras, e também as bandas de fuleiragem music, que se autoproclamavam de “forró”, mas de forró só tinham quando muito a sanfona. São responsáveis pelo revival de rapariga, gaia e cabaré.
Com recursos injetados por empresário com muita grana, as bandas de fuleiragem, com linguajar chulo, simulacro de sexo explícito no palco, cantoras com roupas sumárias, e linguagem direta e comunicativa (confesso, meio punk) passaram por cima dos sertanejos românticos, cujas raízes remontavam à jovem guarda, aos baladões de Roberto Carlos. Saia Rodada (na foto), Cavalo de Pau, Gaviões do Forró, Cavaleiros do Forró, Calcinha Preta, Mastruz com Leite, Noda de Caju, Brucelose e várias e várias tornaram-se donas do pedaço. Cantavam sobre cachaça, carrão rapariga e cabaré. Se perdeu totalmente os limites. Valia pedofilia “toma, pirraia/toma pirraia”, porrada “Vou dá-lhe de cano de ferro/cano de ferro”, e por aí ia.
Fui cobrir uma festa popular numa cidade do interior. Assisti os shows de uma área vip, onde estavam prefeito, primeira dama, as socialites locais, suas filhas etc. Nem me lembro mais qual a banda que abriu. O cantor começou assim: “Tem rapariga aí? Se tem levante a mão”. Acho que até a mulher do burgomestre levantou. Fiquei perplexo, não pela atitude do cantor, mas como ela foi assimilada sem reação. Em tempo outros, aquilo teria terminado mal. Não tinha a ver com moralismo. Mas pelo embotamento da plateia, a força da penetração da fuleiragem. Faturavam muito, atraiam plateias absurdas, e eram tratados como superstars, a quem se permite tudo. Porém com um formato tosco, roupas de mau gosto, os vocalistas de cabelos longos, alisados alguns. Um visual muito esquisito (Wesley Safadão usou cabelos assim até o início da carreira solo). Igualmente tosca, a música, mal gravada, mixada, distribuíam discos de shows ao vivo, mal captados, trafegavam na mão de qualquer tipo de qualidade.
Uma festa tradicional no Interior do estado, houve um jantar na casa do chefe político da cidade, cujo principal convidado foi um cantor sertanejo, dos românticos, cujo parceiro morrera uns poucos anos antes. Depois de uns uísques, ele passou a contar piadas e a fazer comentários grosseiros e sem graça. Mas era como se fosse um capricho de um menino arteiro. Quer dizer, a má educação conseguiu passar por cima dos valores daquela gente, sem ser questionada. Um pessoa comum, da cidade, procedesse daquela forma naquela casa, não sairia inteiro.
O artigo Tem Rapariga aí? Publicado em 2008, não sei o motivo, foi atribuído a Ariano Suassuna. Quem sou eu. Viralizou como se passou a dizer para “tomou conta do mundo”. Muita gente achou que fosse conservadorismo meu. Ora, quem conheceu meus textos no Papa-Figo sabe muito bem que não eram conservadores. Pelo contrário, são politicamente incorretos. O artigo não era porque o cara perguntou se havia rapariga ali. Mas pela reação do público, sobretudo das mulheres. Obedeciam prontamente a qualquer sugestão vinda do palco. Foi por aí que a música ficou em segundo plano. Contava mais fazer parte do rebanho. Não importava se algumas bandas apelavam pra sacanagem em palcos abertos a gente de todas as idades. Me lembro de ver uma garotinha de uns seis anos cantando: ‘Quem quer a minha perequita?/estou dando a minha perequita”, sucesso de uma dessas bandas.
Sem espaço no Nordeste, os sertanejos reciclaram-se. Melhor dizendo, adaptaram-se ao estilo das bandas. É o que fazem há uns dez anos. Adotaram os termos nordestinos, rapariga, mé, quenga, gaia. Deram um chute no romantismo, e adotaram em suas músicas o mesmo hedonismo trash. Beber até acabar o estoque do bar. Lotar a carroceria de mulheres sem rostos e sem nomes. É a rapariga, que se contenta com o kit piriguete: camarão ao alho & óleo, um gin e um energético. Desde 2008, piorou. As bandas tinham um ritmo derivado da lambada, bem dançante. Os sertanejos do século 21, recebem canções prontas, trap, reggaeton, r&b, country, versões de estrelas latinas, uma música que entra por um ouvido e sai pelo outro. Rapariga, de Simone & Simaria é mais um incursão pelo embate namorado versus namorada. Assim como Marília Mendonça cantam mulher paradoxalmente chifrada e empoderada. O pessoal curte tudo isso. Há três décadas, pelo menos. Os neurônios não decodificam canções com harmonias um pouquinho mais complexas, ou versos que empregam versos mais elaborados. Sei que “rapariga” pegou pra valer há umas três décadas.
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