Paul McCartney estava com dez anos e dez meses quando fez sua primeira aparição pública. Ele escreveu um pequeno ensaio sobre a coroação da Rainha Elizabeth (em 6 de fevereiro de 1952). Ele estava em seu último ano na Joseph Williams Primary School, no bairro de Speke. Sem que o garoto soubesse, um dos professores inscreveu o ensaio num concurso promovido pela prefeitura de Liverpool. McCartney foi o vencedor. Recebeu o prêmio das mãos do prefeito da cidade, o pai e a mãe orgulhosos na plateia. Pela primeira vez o futuro superstar teria seu nome publicado num jornal. Talvez se tornasse um escritor de sucesso. Mas queria ser músico, tocar numa banda de rock and roll.
Isto aconteceria, mais ou menos, cinco anos mais tarde, no dia 6 de julho de 1957, quando Paul foi convidado por um amigo para assistir a uma apresentação de um grupo de skiffle chamado The Quarrymen (os integrantes estudavam na Quarry Bank High School). Os músicos do Quarrymen se recordam de Paul adolescente como uma pessoa de muita determinação, cativante, um líder. O responsável pelo encontro dos futuros parceiros foi Ivan Vaughan, um amigo comum. Os Quarrymen fizeram duas apresentações na festa na igreja de Saint Peter Of The Rose Queen, em Woolton. As mais importantes até então para o grupo. Porém Ivan, Peter Shotton, e Nigel Wally, empresário adolescente do grupo, precisaram convencer Lennon a ir falar com o pastor que estava à frente do evento, a fim de garantir a participação da banda.
Vaughan também teve que convencer Paul a ir ver os Quarrymen. A insistência por que McCrtney havia confessado a Ivan que seu sonho era fazer parte de uma banda. Ivan não apenas acreditou, como considerou que John aprovaria a entrada de Paul nos Quarrymen. O acaso fazendo das suas. Se, por exemplo, a tarde fosse chuvosa, o que era esperado para aquele dia, McCartney provavelmente não encararia pedalar debaixo d’água até Woolton, embora fosse um percurso de apenas cinco quilômetros. Se Ivan Vaughan não tivesse colocado na cabeça a ideia de que o grupo precisava de Paul, talvez ele acabasse em outro. Liverpool estava repleta de bandas de skiffle. São várias as variáveis. Mas naquele dia tudo aconteceu como num roteiro fielmente seguido pelos protagonistas.
Paul foi de bike para Woolton, e vestido para causar boa impressão: jaqueta branca esporte sobre a camisa, calças preta. Enquanto guiava, de vez em quando passava a mão pela cabeleira, para evitar que se despenteasse. Aos 15 anos, Paul McCartney era muito vaidoso e elegante, recordam os amigos. John e Paul se conheciam vagamente. A tia de John conhecia a família de McCartney. Foi por parentes que Lennon soube da morte da mãe de Paul (poucos meses depois de serem apresentados, Julia, mãe de John, morreria atropelada).
A feira era uma quermesse, um desses eventos característicos dos subúrbios nos anos 50, com fanfarras, barracas com comidinhas, e coroação da Rainha da Rosa (o nome completo da igreja é São Pedro da Rosa Rainha). Quem fez um relato minucioso daquela tarde foi Julia Baird, irmã, pelo lado materno, de Lennon: “A diversão começou às 14h, com um cortejo, aberto por dois pequenos caminhões decorados que trafegavam a passos de caracol pelo bairro até o largo da igreja. O primeiro carro levava a Rainha da Rosa sentada num trono, cercada por suas súditas, todas vestidas em cetim rosa e branco, com longos laços, e arranjos de flores nos cabelos. As garotas foram selecionadas nos cultos dominicais, pela idade e bom comportamento. Em seguida vinham mais caminhões com as atrações da festa, incluindo The Quarrymen. Os meninos na carroceria. John, em pé tentava manter o equilíbrio enquanto tocava e cantava. Logo desistiu daquela luta, e se sentou na carroceria. O caminhão seguiu em frente, ele continuou assim até o final. Eu e Jackie, uma amiga, acompanhamos saltitando ao lado do caminhão, com nossa mãe embolando de rir, e acenando pra John, que também ria muito. E era o único que parecia estar levando o show a sério, e a gente tirando sarro dele”.
Quem esteve na feira foi a célebre Tim Mimi, que criou Lennon desde bebê. Ela ainda tentava por rédeas no adolescente incontrolável. Mimi chegou ao local, no começo da noite, quando The Quarrymen se apresentava, pela segunda vez. Sua presença deixou John meio nervoso. Sua reação foi o sarcasmo. Quando a viu, cantou de improviso: “Oh, Mimi, Mimi vem a caminho”. As senhoras conhecidas de Mimi, contaram que ela pareceu chocada com o jeans apertados do sobrinho, o penteado e a performance. Por coincidência, Paul assistiu ao show ao lado da tia de John, que ignorava quem fosse.
O baterista Colin Hanton tocou com o grupo à tarde. No segundo show tinha ido embora. Não foi, portanto, testemunha do encontro de John e Paul no pátio da igreja. Ele se lembra quando, duas semanas depois, Paul entrou pro grupo, e ficou impressionado por dois aspectos do novo integrante: “Era um garoto muito simpático, e se expressava muito bem. Tinha jeito classe média, mas num nível ascendente. E era muito bom no violão. Foi isto que levou John a querer que entrasse para a banda. John tocava muito mal, dedilhando como se fosse um banjo. Paul o ensinou a afinar o instrumento. Era muito envolvente para a idade, e bastante prestativo”.
Colin Hanton foi baterista dos Quarrymen até o segundo semestre de 1958, quando Pete Best passou também a tocar com o grupo, já rebatizado de The Silver Beatles. Pouco tempo depois, Best foi efetivado, e Hanton parou de tocar. A ida de Paul para a feira de Woolton, embora não tivesse sido combinado, foi pra fazer um teste. O que mais impressionou John, tanto quanto o domínio no violão, foi quando Paul cantou Long Tall Sally, de Little Richard. Lennon passaria a fazer um versão assemelhada de Twist and Shout. Sucesso dos Isley Brothers. Na turnê americana dos Beatles em 1964, os shows eram abertos com a primeira, e fechados com a segunda.
Quem também não estava presente no momento do histórico encontro foi Rod Davis, que tocou banjo nos dois shows daquele dia: “Não vi quando Ivan apresentou Paul a John. Acho que na hora fui mijar. Num momento vital da história do rock and roll eu estava mijando. Algumas semanas depois, Paul entrou, e eu sai do grupo”.
McCartney não entrou apenas para o grupo, mas para o círculo familiar de John. Tanto Julia, quanto Tia Mimi adoraram as boas maneiras do novo amigo de John, que se tornou empenhado em tocar e cantar. Julia Baird conta no seu livro, que assistiu a muitos ensaios de John e Paul na casa de Tia Mimi, a mãe dela, e de John não apenas assistia como incentivava os dois rapazes. Sentia um pouco de disputa entre ambos, ou competitividade, mas foi isto o combustível que impulsionou a fábrica de hits dos Beatles. Por exemplo, Paul compôs sozinho Can’t Buy me Love, John logo depois fez You Can’t Do That. Paul foi à tréplica com Should Have Known Better, um diplomático e sutil pedido de desculpas, que encerrava a disputa.
O grupinho colegial amador desenvolveu-se a passos largos. Sam Leach, importante produtor de shows na região de Liverpool, chamado o Rei da Mathews Street, rua onde se localizava a maioria dos clubes musicais da cidade, foi dos primeiros a constatar a evolução da banda, que viu numa apresentação no Hamilton Club. Antes da Quarrymen adentrar o palco, acontecia uma briga no salão, adolescentes de grupos rivais engalfinhavam-se. A briga cessou imediatamente quando a banda começou a tocar. Leach ficou tão impressionado que resolveu ir ao camarim conversar com os integrantes. “Entrei lá, e disse que seriam maiores do que Elvis. Eles se entreolharam. John me olhou como se eu fosse maluco. Permaneceram em silêncio. Então Paul veio até mim, com aquele sorriso dentuço dele, e perguntou: ‘Quer trabalhar com a gente, senhor Leach?’ John revirou os olhos. Eu disse que queria, e agendei um show para o grupo no Casanova, um clube que estava abrindo. Paul era astuto. Sabia que eu estava abrindo uma casa de shows, e se aproveitou da ocasião”. Em 1958, a formação do grupo era John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Stuart Sutcliffe, e um baterista mais ou menos fixo. A banda ainda teria quatro anos de perrengues. Ringo Starr entraria quando os Beatles estava prestes assinar com o contrato com a EMI; Assim como se diz que ele é o cara mais sortudo do mundo, se poderia dizer que Chas Newby é o mais azarado.
Newby foi convidado a tocar baixo com os Beatles em dezembro de 1960, porque Stu Suttcliffe, depois de uma temporada da banda em Hamburgo, Alemanha, preferiu permanecer na cidade com a namorada, a fotógrafa Astrid Kirchen. Chas Newby, que tocara numa banda com Pete Best, tinha 19 anos e fazia faculdade. Só aceitou o convite porque estava de férias. Ele tocou cinco shows com os Beatles, Quando o grupo foi contratado para a segunda temporada na Alemanha, John Lennon queria que ele viajasse com a banda. Newby não quis. Teria que interromper os estudos, e achou irrisório o cachê que iria receber. Em 2106, aposentado, com quatro netos, ele topou um convite para tocar no ressuscitado The Quarrymen.
CODA
Rod Davis só teve contato com seu substituto no Quarrymen 39 anos depois, Em Brighton, na praia, em 2005. Davis estava lá para assistir a uma competição de windsurfe. “Um amigo me disse que acabara de ver Paul McCartney passeando com um cachorro. Tá brincando?, a minha reação. Fui dar uma olhada e lá estava ele conversando com os organizadores da competição. Quando me viu, ele disse: ‘Olha quem tá aqui’. Me aproximei, apertei a mão dele.’Você fazia o quê naquela época?’. Respondi: Sou o cara que você substituiu no Quarrymen, em 1957. E ele: “Minha nossa, faz um tempinho, né? O que houve, eu te passei uma rasteira?’. Eu disse: Nada. Normal. Eu tocava banjo, e não dava pra ter um banjo numa banda de rock. O grupo tava cada vez mais rock and roll, eu deveria ter dito antes. Mas não falei nada, porque parecia que a gente não iria a lugar nenhum”. Conversaram até Paul foi chamado para entregar os troféus, o cachorro começou a ficar inquieto. E ele foi embora. Foi a única vez em que Rod Davis, que se tornara um professor conceituado, falou com Paul McCartney.
Rod Davis, 40 anos depois, retomaria o lugar que cedeu a Paul no Quarrymen. Em 1997 ele trouxe a banda de volta, com Len Garry e Colin Hanton. Continuam na estrada, todos devidamente aposentados. Formam a base do grupo, que já mudou várias vezes a formação. Indiretamente responsável pelo surgimento dos Beatles como o conhecemos, Ivan Vaughan esteve até final da vida ligado ao grupo, um membro honorário do círculo íntimo do quarteto. Estevepor algum tempo na folha de pagamento da Apple para tocar projetos que nunca foram à frente. Sua esposa poderia ter entrado na parceria de Michelle, foi ela que traduziu os versos em francês que abrem a canção, um dos hits do álbum Rubber Soul (1965). Vaughan morreu em consequência do mal de Parkinson em 1993.
Nota – Este ano de 2022, aniversário de 60 anos do primeiro disco dos Beatles na EMI. este blog publicará uma matéria a cada 15 dias sobre os primeiros passos da banda até o estrelato, baseado em livros de testemunhas oculares dessa história que mudou o curso da música pop e da juventude dos anos 60.
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