Donga, numa entrevista de 90 anos atrás, faz revelações sobre os primórdios do samba

Donga, o General do Samba, foi testemunha ocular do nascimento do samba. Felizmente, há 90 anos, jornais cariocas não desdenhavam os artistas populares. Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, 1890/1974) concedeu em dezembro de 1932, uma longa entrevista ao jornal O Radical. Na verdade, um depoimento, com revelações sobre os primórdios do samba, e de um compositor que co-assina, com Mauro de Almeida, aquele que é considerado o primeiro samba, Pelo Telefone, de 1917. Autoria que, é unanimidade, contestada. Pelo Telefone é uma criação coletiva.

A intenção de Donga, pelo que disse, era negar que o samba tivesse origem, ou maiores ligações com o morro.  Ressalta que o samba foi criação de baianos e pernambucanos. A história oficial aponta que o samba surgiu dos baianos que vieram para o Rio. Não foram para o Rio apenas ex-escravos libertos vindos da Bahia, mas do Nordeste inteiro. Pelo Telefone é bem uma prova disto. É um samba raiado, já amaxixado, cuja letra é formada por quadrinhas com origem em vários estados do “Norte”, algumas delas do cocos ou bumba-meu-boi

Donga cita alguns manifestações esquecidas, que não estão nos livros sobre o gênero. Um dos “nortistas” que cita, e ao qual enfatiza a importância na fundação dos ranchos é Hilário Jovino, pernambucano do Recife, que em praticamente toda literatura sobre o samba é tido como baiano, criado na Bahia. (ele foi para Salvador já adulto). No depoimento há passagens que não ficam muito claras, mas no geral o depoimento é precioso.

 Abaixo transcrição das considerações de Donga:

“O samba é nosso, é muito nosso e bem brasileiro. Nasceu aqui no Beco do João Inácio, na Pedra do Sal, em casa da Tia Sadata. Ora o morro não é beco, nem em beco existe morro. O Beco do João Inácio é uma ladeira muito ligeira, salvo de ladeira foi crismada com o nome de morro, dada a evolução das coisas e dos tempos”

 “O samba chegou aqui trazido pelos nortistas, baianos e pernambucanos, conhecedores de frequentadores de maracatus e bumba meu boi, este usado pelo Natal. Foi assim que se fundou o rancho 2 de Ouro, em casa da Tia Sadata, composto dos Nortistas, entre os quais se contavam o tenente Hilário Jovino, Dudu, Cleto , já falecido, Tito, Marinho, pai do autor do samba Apanhando Papel, João Câncio, já falecido, os irmãos João e José, da Mocotinha, as filhas da Tia Sadata, Isabel, Veludinho, e Caititu.

Neste rancho havia a marcha condutora, que era acompanhada por um grupo de pandeiros, os quais eram chamados “camisões”. O samba era indispensável porque toda porta-bandeira ou porta-estandarte, como chamavam, era obrigada a sambar e muito bem. Em samba nunca houve tamborim porque não dava o mesmo rojão que dava o camisão. Rojão chamavam eles o que nós chamamos de ritmo, e camisão pandeiro. O pandeiro sempre figurou nos cordões de velho e creio que todos hão de se lembrar, porque não é do tempo de Adão. Se não existe é porque tudo mudou, até as fantasias.

O seu papel principal nos cordões de velho o seguinte: o velho puxar o can-can e desmanchar a tesoura. Os palhaços no passo do corta-capim. Os reis do Inferno nos seus brados que era o que tinha de maior ciência. As rainhas do Inferno nos seus brados mais estridentes. Se destacou nisso por muito tempo, o João Flautim, com seu brado formidável, e que se fantasiava de rainha. Nos ranchos também havia o João Ratão, que teve papel saliente, se bem que em gênero muito diferente, na burrinha, que hoje não mais se vê (n- a burrinha é típica do cavalo-marinho ou bumba-meu-boi)

Dai teve o samba e seu itinerário seguindo pela Senador Pompeu, Providência, América e Travessa Bom Jardim, ficando aí por muito tempo, e quero crer que ainda hoje existe por lá, digo por toda Cidade Nova onde foi a verdadeira escola de samba. Se se encontra samba no morro é porque nem todos podem ser contemplados com a sorte para poderem morar cá embaixo onde moravam os grande professores do samba. Mas o grande caso é que as primeiras lições foram bebidas dos antigos. Fundou-se também o Rei de Ouro, A Jardineira, rancho da verdadeira escola de tudo o quanto há neste gênero, tendo à frente o mestre Hilário Jovino.

Se assim me refiro é porque sou conhecedor do gênero em todas as suas modalidades. Não quero que os colegas pensem que é despeito meu, porque eu posso dizer e provar que fui o primeiro a se arrojar e lançar o samba nos salões, Pelo Telefone. Notando-se que sofri as maiores guerras, mas digo, sem pretensão, nem vaidade, alcancei o maior sucesso que se pode alcançar, quer monetário, quer popular, e não havia nem vitrola, nem rádios que hoje popularizam toda gente.

Fala-se muito em samba, mas no meio de tudo isto há muita orelhada como diz a gíria. Eu sempre fiz samba, e não nasci no morro e sim na Aldeia Campista, nem nunca fui para o morro para fazer os meus sambas. O samba propriamente dito tem as suas categorias, mas é sempre aquele samba que qualquer sambista pode sambar. O samba raiado é aquele que existe no partido alto (partido alto é aquele em que só tomam parte os ases do samba que sambam de verdade) é o que no Norte se chama de toada.

Há quem chame samba de batucada, mas é coisa que não existe. Devem se lembrar do disco Victor Patrão Prenda Seu Gado, samba raiado gravado pela minha orquestra Guarda Velha. Temos agora o samba de rua, hoje muito usado. É o que antigamente quando na festa da Penha a polícia dava por terminada a festa, eles tiravam um samba para com eles virem andando até a estação.

Ainda temos a batucada, outro gênero completamente diferente do samba e da marcha, onde o instrumento principal é o pandeiro para a marcação do ritmo. Ainda temos outras modalidades que não vale a pena mencionar por falta de tempo. Tudo eu aceito menos que o samba tivesse nascido no morro.

 Qual é o seu ponto de vista? É o título da minha marcha para o carnaval, com letra de Lamartine, um dos bons compositores da atualidade, e Noel Rosa ainda está no meu ponto de vista pelo modo original de escreveu os seus sambas. Este é o meu ponto de vista.

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