Coisas, do maestro pernambucano (Serra Talhada,1926/2006) Moacir Santos não é apenas um disco genial. É um cânone da música popular brasileira. Quando foi lançado, em 1965, Moacir Santos era figura onipresente na música que se fazia no Rio. Arranjador e professor de sumidades. Coisas, quando lançado, não passou despercebido, claro, porém, paradoxalmente, teve bem menos destaque na imprensa da época do que sua importância pedia. O álbum é uma espécie de compilação da produção de Moacir Santos. O tema Coisa nº5, por exemplo, com letra de Mário Telles (irmão de Sylvinha Telles), antes de ser incluída no disco, foi o grande sucesso do LP A Nova Dimensão do Samba, de Wilson Simonal, de 1964.
Ao longo dos anos, Coisas foi fazendo amigos e influenciando pessoas. Difícil uma orquestra brasileira não ter alguma coisa de Moacir Santos, mesmo que tenha absorvido de terceiros. Moacir era tão cultuado entre músicos e especialistas em música, que a trilha de Ganga Zumba, que chamava de Sinfonia Negra, foi muito mais elogiada do que o filme, de Cacá Diegues. Ela aliás é ponto de partida para o álbum Coisas, com selo Forma, a lendária gravadora de Roberto Quartin (1942/2004). A propósito, a Forma ganhou uma oportuna biografia. lançada pela Kuarup: Tempo Feliz – A História da Gravadora Forma, de Renato Vieira
Coisas é impregnado de estética afro, sem proselitismos, nem levantar bandeiras, isto já palpável na música do maestro. Em 1964, por exemplo, a Associação Cultural do Negro de São Paulo promoveu, em setembro, o festival o I Festival de Vozes Brasileiras, apoiado pela Divisão Cultural do Itamaraty. Foram três dias de vozes, em sua maioria negra, como Heitor dos Prazeres, Zé Kéti, Noite Ilustrada, Wilson Simonal, e presença de personalidades como Pelé, a atriz Rute de Souza, o etnólogo Edson Carneiro, além dos embaixadores de Gana e do Senegal. Moacir Santos pairou onipresente durante os três dias do evento, dirigindo uma orquestra com 46 músicos.
Roberto Quartin, da gravadora Forma, pela qual Coisas foi feito, fez uma síntese do álbum: “Moacir Santos criou, mais do que um disco, um documento histórico, autêntico dentro do mapa da música popular brasileira (…) Este disco é negro da desde a capa a vinilite, do músico ao som que ouve. Entre os músicos que tocam sob a regência do maestro, estavam o saxofonista, clarinetista e flautista Copinha (Nicolo Copia, 1910/1984), o violonista Geraldo Vespar, e o baterista Wilson das Neves (1936/2017).
O longo prolegômenos para comentar o disco Moacir de Todos os Santos, de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz (com selo da Rocinante). Um disco com uma história que chega a ser curiosa. Em 2018, o maestro Letieres Leite, em formato de quinteto, gravava no estúdio da gravadora Rocinante o álbum O Enigma Lexeu. Leite comentava com Sylvio Fraga, um dos donos da gravadora (com Pepê Monnerat) sobre um concerto que havia apresentado com temas do álbum Coisas. Fraga sugeriu que ele gravasse o repertório desse espetáculo.
Foi dada ao maestro e a Orkestra Rumpilezz as melhores condições possíveis para realizar o disco. O estúdio na serra fluminense foi ampliado para caber confortavelmente os 22 músicos, ganhando mais três salas, batizadas de Rum, Pí e Lê, os atabaques dos quais vêm o nome da orquestra. O som foi captado por três máquinas de fita, de 24 canais. Em 27 de outubro de 2021, quando o álbum estava sendo mixado, o maestro Letieres Leite morreu por insuficiência respiratória, em consequência da covid-19.
Moacir de Todos os Santos foi uma ousadia do maestro baiano regravar uma obra de arte adjetivada de irretocável. No texto que escreveu para o disco, Gilberto Gil sintetiza o projeto final de Letieres Leite: “Letieres Leite reuniu em Salvador um grupo seleto e eclético de músicos, uns vinte e poucos, negros, mestiços e brancos – todos eles associados às vertentes mais populares ou mais clássico-eruditas da música que se faz na Bahia. Egressos das orquestras de concertos, dos conjuntos de baile, dos terreiros de candomblé, dos clubes musicais cultivadores do jazz e das vanguardas mais recentes do pop internacional, esses músicos se juntaram sob a regência de Letieres – ele, multiartista interessado em promover resgates e impulsionar avanços na música da Bahia e do Brasil”.
Foram regravadas sete dos nove temas do álbum Coisas. Letieres Leite se aproxima da música de Moacir Santos com reverência, enfatiza a percussão, que já é bem enfatizada no disco original, mas injetando tempero, sem muita pimenta, para lhe dar um sabor baiano. Convidados reforçam a tentativa. Na abertura do disco, o trombonista Raul de Souza (falecido em junho de 2021, na França) toca em Coisa nº4. Caetano Veloso, um midas da interpretação, torna ainda mais ainda mais reluzente a mais famosa das “coisas” de Moacir Santos, a de nº5, mais conhecida como Nanã, aqui cantada em inglês. Os saxofonistas e Marcelo Martins e Joander Cruz são os outros convidados.
A maior importância do álbum é a convergência de dois maestros nordestinos, região onde a influência da música afro é grande, para a mesma música. Moacir de Todos os Santos sugere caminhos que Letieres Leite poderia seguir, embora não se comprometa nesta empreitada, sua reinterpretação não reinventa os temas originais. É outra maneira de escutá-los, mas já o bastante. Há obras que chegam ao público com o carimbo da perfeição, Chega de Saudade, de João Gilberto, Abbey Road, dos Beatles, e Coisas, de Moacir Santos.
Sou de Nanããã
Telles toques de Mestre!
Asè!
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