O funk tem seus meandros percorridos em livro publicado pelas Edições Sesc São Paulo

A música brasileira foi profundamente modificada com o surgimento do estilo denominado MPB (que se chamou por pouco tempo MMB – Música Moderna Brasileira, que não pegou). Até então, com exceções, a canção popular não trazia mensagens políticas embutidas nas letras. A não ser em sátiras, ou nos sambas ufanistas da ditadura Vargas, dos quais o mais conhecido é Aquarela do Brasil (1939), de Ary Barroso.

A MPB, surgida simultaneamente aos festivais de música popular, era feita por compositores de nível universitário, música cujos consumidores, em boa parte, eram também de universitários. A canção da MPB tinha uma mensagem, tinha muito a ver com seu tempo. A grande maioria dos autores e intérpretes era de esquerda, e contra a ditadura militar instaurada um ano antes do festival da TV Excelsior, vencido por Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, interpretado por Elis Regina.  Pode-se determinar aquele certame como o início da MPB.

Essa música de confronto ao regime seria duramente censurada a partir da decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, Tornar-se-ia uma trincheira contra o autoritarismo, pela liberdade ao longo dos anos 70, apesar das proibições de letras, shows, apreensões de discos. Com a volta da democracia, ocorreram grandes mudanças na música brasileira, sobretudo entre os artistas que entraram em cena nos anos 90. Agora o protesto era contra as condições sociais. Rappers e bandas de metal, cantavam sobre as mazelas da sociedade

. No Recife o manguebeat de Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A, para citar as pioneiras, teciam comentários sobre a capital pernambucana, e adjacências, partindo de sua aldeia para chegar aos palcos do mundo.  Na década de 90 promoveu-se uma renovação no cenário da música brasileira, novos grupos e intérpretes com umanova estética, que tinha cada vez mais menos ligações com a MPB dos 60 e 70.

Entre essa nova renovação estava o funk carioca, quase minimalista nos equipamentos que empregados para gravar, nas repetições de frases melódicas. As músicas são crônicas do cotidiano das favelas. A polícia  é o opressor, é o governo para os funkueiros. Suas letras falam de armas, bandidagem, e de sexo, sem metáforas. Claro, houve censura, polícia chegou junto, mas o funk não parou de se expandir. O gênero alcançou outros estados, em Pernambuco surgiu o brega funk, e diversas variações país afora. O funk chegou aos grandes festivais pop, feito o Lolapaloosa.

“O gênero remete à diversão, a uma batida irresistível, amigos, liberdade, sensualidade, protagonismo negro e periférico, mas também relaciona imagens ligadas à violência, tráfico de drogas, confusão, arrastão, apologia de crime, vulgaridade e pobreza musical. Mas o que é esse fenômeno que desperta tanto ódio, e paixões conflitantes?”, que tem o comentário e faz a indagação é Danilo Cymrot no livro Funk da Batida – Baile, Rua e Parlamento (Edições SESC), originado de uma dissertação apresentada em 2011, na Faculdade de Direito da USP. O texto foi atualizado e adaptado para limar os academicismos, e tornar a leitura mais palatável. Embora em alguns trechos transpareça o viés de um texto feito pela ótica da criminologia. Afinal, o título da dissertação era A Criminalização do Funk Sob a Perspectiva da Teoria Crítica.

O texto é dividido em três partes. A primeira, aborda a relação do funk com o espaço público analisando ações como o rolezinho, formação de galeras, os arrastões nas praias do Rio, projetos de lei que tentam disciplinar os bailes funk. A segunda parte analisa a relação entre o funk e a violência. Na terceira, foca os bailes das comunidades cariocas, a relação dos funkeiros com traficantes, o funk proibidão, o que motiva seu sucesso, e projetos que visam controlar atividades tais como apologia ao crime ou à pedofolia (“novinha” é palavra recorrente nos funks).

Nas suas 385 páginas, com prefácio do sociólogos Hermano Vianna, pioneiro em analisar o fenômeno do funk carioca, Danilo Cymrot esmiúça as diversas nuances do funk, enfatizando, por exemplo, os arrastões, que teriam surgido em outubro de 1992, na praia do Arpoador, na Zona Sul, mas que já aconteciam nas saídas dos bailes funk na Zona Norte. Me parece que os arrastões têm ligações com os que praticam as torcidas organizadas depois de partidas de futebol. O Estudo é realizado basicamente sob o ponto de vista do Rio, mas em 1992, no Centro do Recife, os chamados cheira-cola, ou trombadinhas realizavam arrastões frequentemente, sem que o funk tivesse aportado na cidade.

Faz-se uma associação à repressão à capoeiragem, valentões no século 19, em cidades como Rio, Salvador ou Recife, ao próprio samba nos anos 30, e se chega ao Black Rio nos anos 70, acontecido no regime militar, reprimido por motivos ideológicos. Temia-se que incitasse os negros à insurgência influenciado por grupo radicais africanos. O Black Rio criou um mercado próprio para a música, roupas, abriu caminho para artistas como Carlos Dafé, Gerson King Combo ou Banda Black Rio.

O autor alinha ponto por ponto do universo do funk, em capítulo cujos títulos já dizem do se conteúdo: O medo de aglomerações negras , O lugar do pobre, o aspecto político do funk, Um bonde chamado terror – a subcultura da zoação, A política e a imposição da ordem, Baile funk e drogas, Que é isso, novinha – o funk putaria.

Ao analisar o funk carioca, poderia estar analisando o brega funk pernambucano. Embora chocante para evangélicos, ou grande parte da classe média, os funkeiros tão somente refletem o meio em que vivem. Sua realidade é aquela, como era a da malandragem do sambista dos anos 30.  Falam do seu mundo, habitado por pretos, ou quase pretos, separado por uma barreira do mundo habitado pelos brancos, ou quase brancos. Uma barreira tênue. Seja lá o grau de marginalidade, de ligação com bandidos, a crueza da linguagem, mais cedo ou mais tarde será assimilado e consumido pela classe média. Aliás, começou há algum tempo a ser. Afinal funkeira Anitta torna-se uma megaestrela brasileira, e internacional, praticamente com o mesmo modo de agir e falar que empregava quando morava numa comunidade carioca. Vale a pena ler Funk na Batida, que npercorre os meandros de um Brasil marginalizado, com o funk ainda visto com preconceito, menos como música, e mais como uma questão de segurança pública.

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