Bala Desejo carnavaliza a MPB com repertório composto durante a pandemia

Sim, Sim, Sim, álbum do Bala Desejo (Coala Discos) lançado em janeiro e fevereiro de 2022. Como se fosse um LP que o artista disponibilizasse primeiro o lado A  depois, um mês mais tarde, o lado B. Aliás, não se trata simplesmente de só um disco, é uma força tarefa musical. Júlia Mestre, Dora Morelenbaum, Lucas Nunes e Zé Ibarra compuserem as canções do álbum durante a pandemia, quando se decidiram pelo isolamento em quatro. Todos desfrutam de bastante intimidade com a música, inclusive por laços familiares (Dora é filha de Jaques e Paula Morelenbaum).  Julia lançou dois EP e dois álbuns, o segundo. Arrepiada, em abril deste ano. Dora também toca carreira solo, com um EP lançado em 2021. Por fim, Lucas e Zé são da Dônica (grupo no qual tocam com Tom Veloso, Deca Almeida e Miguima Guimarães). Sem esquecer que Lucas Nunes coproduziu o álbum Meu Coco, de Caetano Veloso (e está tocando na banda do baiano).

Quando o álbum chegou ao público, Julia Mestre apressou-se em ressaltar que os quatro não eram exatamente uma banda, mas devem ter mudado de ideia, porque já fizeram alguns shows (estão na programação do Festival de Inverno de Garanhuns). O Bala Desejo faz uma MPB moderna, mas com um pé no passado, enfatizando as harmonias vocais, letras e melodias engenhosas, mas sem fazer a junção de tendências quase obrigatórias na nova música brasileira (rap, reggaton, ou alguma vertente brega). É até curioso, jovens cantando sem vibrato, enquanto a grande parte dos intérpretes brasileiros ou se esqueceram ou ignoram as lições de João Gilberto. Interessante também é que os quatro despojam-se de suas individualidades em favor do todo.

O disco já seria muito bom se fosse limitado apenas aos integrantes. Mas eles tiveram direito a uma quantidade recorde de participações especiais, além de contar com alguns dos melhores instrumentistas do país. Neste segundo item, entre outros, tocam com o Bala Desejo: Alberto Continentino (baixo), Daniel Conceição (percussão e bateria), Marcelo Costa (percussão), Tim Bernardes (guitarra), Jorge Continentino (sax e flauta). Jacques Morelenbaum assina os arranjos de cordas, com Marcelo Martins (sax), Gilmar Ferreira (trombone) e Jessé Sadoc (trompete).

A lista dos artistas convidados é quilométrica, vai de Teresa Cristina, passa por Caetano Veloso, Ana Frango Elétrico (que coproduziu o disco com o quarteto, com supervisão de Marcus Preto), Rubel, Ney Matogrosso, Duda Beats, Tom Veloso, e Maria Gadú, e mais de uma dezena de nomes da geração do Bala Desejo. Muito do disco foi gravado num dos quartos do apartamento em que os quatro passaram a quarentena.  

O álbum com a banda vendendo seu “peixe”, em Embala pra Viagem, a Kombi da Bala Desejo está na rua, com um cardápio de lanches na base do trivial variado. A batida do samba caetaneado faz-se presente no suingue de Baile de Máscaras (Recarnaval), esta faixa aponta para o conceito retrô de MPB setentista do álbum, porém com uma descontração e leveza que aqueles tempos não permitiam. Lembra As Frenéticas, que surgiram no cenário carioca, quando se prenunciava a abertura do regime, e já se permitiam ousadias.

O arranjo de sopros torna o samba Lua Comanche muito 1970, que contrasta com Clama Floresta bem contemporânea, um reggae enriquecido pelas harmonias vocais.  As canções dialogam com o tempo, Dourado Dourado é novamente anos 70, com ecos dos Novos Baianos, que nunca tiveram direito ao elenco de músicos que emolduram com requinte o repertório do Bala Desejo, e esta faixa é uma das mais sofisticadas, terminando com latinidade e em espanhol.   

Nesse Sofá evoca a placidez de Domingo, o álbum que Caetano Veloso dividiu com Gal Costa em 1967, e confirma que os integrantes do BD são munidos de uma cultura musical abrangente, que não se prende apenas a nomes cultuados pela sua geração. Chupeta, por exemplo, uma faixa curta, tem levada da disco music brasileira de final dos anos 70. É também assim Lambe, Lambe, com um viés para a Rita Lee dessa época. Sim, Sim, Sim, vinheta de 35 segundos, é o “sim” sussurrado repetido. Cronofagia (o peixe) é de letra elaborada, e reflete o momento crítico em que foi feita a canção, reflexões sobre o roteiro kafkiano que se abateu sobre o planeta.

 O disco é fechado com a ficha técnica. Pela quantidade de pessoas que contribuiu para o projeto acontecer, é a sua faixa mais longa. Torcer pelo segundo disco, de preferência, com menos convidados, e mais Bala Desejo, que em trabalhos solos se garantem, além de facilitar para se levar o repertório ao palco.  

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