São Paulo é uma cidade sem paisagem. Olhem-se fotos de pessoas que a visitam. Quase sempre estão em bares, restaurantes, ou padarias. Curtir padaria é hábito tipicamente paulistano. O baiano Tom Zé foi pioneiro em cantar a cidade declarando seu amor por suas qualidades e defeitos, em São Paulo São Paulo, que venceu o IV Festival da MPB, da TV Record, em 1968. Era, pois, quase óbvia a participação de Tom Zé no álbum PSSP, da Filarmônica de Pasárgada, nascida em 2008, segundo autodescrição no site do grupo, “formado por alunos repetentes do curso de música da USP, com o objetivo de interpretar as canções de Marcelo Segreto”.
Em seu quarto disco, o recém-lançado PSSP (YB Music), a Filarmônica de Pasárgada é a mais perfeita tradução de São Paulo, em 14 faixas de puro amor à metrópole mas, assim como a citada composição de Tom Zé, sem lhe esconder os muitos defeitos. O disco produzido, arranjado, e com todas as canções assinadas por Marcelo Segreto (algumas com parceiros), é aberto com GPS (com Caê), um passeio pela cidade, como se empregasse o aplicativo para se localizar.
A banda destila influências da turma da Lira Paulistana, com o idêntico humor refinado nas letras das canções complexas, e acessíveis, e também de Tom Zé, com o qual vem trocando figurinhas há tempos. Com participações especiais um no disco do outro. Em 2013, o FP marcou presença no álbum Tribunal do Facebook, de Tom, que retribuiu participando do segundo disco do grupo, Rádio Lixão, de 2014.
Tom Zé participa em PSSP, na faixa Nome de Rua, uma circulada pelas ruas da Paulicéia, em que se chega à constatação da ausência das feminina nas placas de ruas e logradouros da cidade. Por sinal, Tom Zé mora, em Perdizes, numa rua masculina até no nome do homenageado: Dr.Homem de Melo. “Me responde onde elas estão/me responde onde que estão elas/pois as ruas, alamedas, praças passarelas/avenidas, estações, pontes, e vielas/são sempre femininas/mas as meninas/não estão no nome delas”.
São Paulo não é apenas rock indie, vanguarda, experimentações, para lá convergem nordestinos e paulistas. A viola caipira abre Cartão Postal, que aproveita a melodia de João Pernambuco para Luar do Sertão (letra de Catulo da Paixão Cearense, que era maranhense), para reforçar a imagem da cidade sem paisagem: “Não há, não há, não há/cartão postal pra te postar”.
Na época da chamada “Vanguarda Paulistana”, havia grupos muito bem humorados, como o Premeditando o Breque, ou Premê. O Filarmônica de Pasárgada herdou lado engraçado do pessoal dos anos 80. Aliás, uma das faixas de PSSP, intitula-se Lira Paulistana (com Paula Mirhan), e reúne na letra o modernista Mário de Andrade com os músicos que gravaram discos com selo da Lira Paulistana, ou se apresentaram no teatro do mesmo nome. PSSP é um disco paradidático, deveria ser adotado nas escolas de São Paulo pela quantidade de temas paulistanos que aborda, incluindo a mastodôntica virada em cultural, na faixa homônima, ou o samba paulistano de Adoniran Barbosa, em Saudosa Ma Loka (com Kiko Dinucci), em que os personagens da música original são realocados para a São Paulo de agora. O Joca, fuma crack, Matogrosso está só pele e osso, e Adoniran embarca num camburão.
E ainda os imigrantes japoneses, em Kasato Maru (com Fernando Henna), nome do navio que aportou em Santos, em 1908, trazendo os primeiros imigrantes nipônicos, a letra é um hai-kai. Enquanto Quarto de Despejo aborda preconceitos, ao mesmo tempo em que homenageia a catadora de papelão Carolina Maria de Jesus, autora do livro que deu o título a esta faixa. A música é também uma homenagem ao Mestre Moa do Katendê (assassinado em 2018, no início da polarização política que assola o país). E aí a canção abre-se para um paranauê com participação de Mestre Zelão e da Escola Mutungo de Capoeira Angola.
O inusitado permeia PSSP. A faixa Psiu tem 4m33s é inspirada na peça 4’33 de John Cage, assim como esta, é só silêncio, a qual pode ser inserido o som ao redor. São Paulo de Piratininga São Paulo S Paulo SP é a faixa de arranjo instrumentais e vocais mais elaborados (e todas elas têm roupagens primorosas), com participações de Barbatuques, Música de Montagem, e Trupe Chá de Boldo, um resumo da história da cidade em 5m48s. Rios e Ruas versa sobre riachos e rios, ocultos sob as ruas da cidade, enquanto Falta De aborda o inconstante suprimento de água na capital paulista.
A faixa final é o desfecho que esclarece o título do álbum, o PS é de post scriptum, um recurso, quase em desuso, que se usava nas cartas manuscritas, para acrescentar o que não estava no corpo do texto. PSSP é uma bela homenagem a maior metrópole da América Latina, suficientemente vasta para caber os vários brasis, concentrando em si o cadinho de raças e de desigualdades sociais do país.
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