Rainha Elizabeth esteve duas vezes no Recife em 1968. Voltou para Londres levando na bagagem 50 caixas de abacaxi, e um retrato autografado do marechal Costa e Silva

Glauber Rocha poderia ter sido o autor do roteiro da rainha Elizabeth e do marido, o Principe Phillips, em novembro de 1968, na única visita de Sua Majestade ao Brasil. Na semana da chegada do casal real ao Recife, por onde começaram a visita, jornais ingleses noticiavam que em celebrações de vodu na Bahia (candomblé, na verdade), galos foram sacrificados, para dar sorte à rainha. E funcionou.  Porque sua majestade escolheu uma época tumultuada para vir ao país. Manifestações estudantis pipocavam todos os dias, a oposição forçava a barra pedindo a volta da democracia,  a linha dura do regime ameaçava botar pra quebrar. Botou.  43 dias depois da chegada da Rainha Elizabeth ao Brasil, foi decretado o Ato Institucional nº 5, o célebre AI-5.

Dias antes de o avião real aterrissar no aeroporto dos Guararapes, onde já se encontrava o Principe Philips, que veio do México, onde fora conferir os jogos olímpicos, O CCC (Comando de Caça aos Comunistas) grupo de extrema direita radicalizava no Recife. 30 integrantes do seus invadiram a Universidade Católica e a Faculdade de Engenharia, onde promoveram um quebra-quebra e, logo em seguida, distribuíram tiros na Casa dos Estudantes da Universidade Federal Rural. 

No final da semana anterior, a cinco dias para a chegada da rainha, provavelmente integrantes do CCC metralharam a casa em que Hélder Câmera morava, no fundo da igreja das Fronteiras, na rua homônima, na Boa Vista. Os quatro homens encapuzados, depois dos tiros, bradaram: “Morte ao arcebispo vermelho, morte ao arcebispo de Moscou”. Quase matam de susto a senhora que cuidava da casa. D.Hélder encontrava-se no Rio. O atentado ganhou manchetes no Brasil e no exterior.

O clima de confronto entre estudantes, organizações de esquerda, e o regime militar aproximava-se dos finalmente. Temia-se que a comitiva real se deparasse com manifestações estudantis no seu trajeto até o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual. Entrou em ação, pois, talvez o maior aparato policial já montado no Recife, para garantir a tranquilidade, pelo menos durante as aproximadas duas horas em que a Rainha Elizabeth passaria na capital pernambucana. Cinco mil homens, das forças armadas, polícias militar e civil espalharam-se pela cidade. Agentes do Dops postaram-se nas pontes por onde transitaria o carro aberto (um Lincoln), em que a rainha desfilaria pelas ruas do Recife.

Nas semanas que antecederam a visita real, desencadeava-se uma guerra, pacífica, mas barulhenta, de vips pernambucanos por convites para a cerimônia que aconteceria nos salões do palácio do governo. Seriam distribuídos apenas 180 convites, metade deles para súditos da rainha da Inglaterra, que viviam na capital. O chefe do cerimonial governo Nilo Coelho, o jornalista Paulo Fernando Craveiro, precisou de se valer de muita diplomacia para contornar o problema, mas não flexibilizou o número de convidados: 180, nem um a mais. Abriu mão de reter o convite, depois da entrada do convidado. Estes pediram que os convites lhes fossem devolvidos, para guardá-los como lembrança da efeméride.

 Estimou-se em 200 mil, a quantidade de recifenses que esteve às ruas para ver a rainha Elizabeth, conhecida por ser bastante discreta, mas que naquela tarde de 1º de novembro de 1968, vestia-se nas chamativas cores verde e amarela, acenava e distribuía sorrisos para a multidão que gritava seu nome. O cortejo transcorreu tranquilo. Era Dia de Todos os Santos, um quase feriado, quando a comitiva passou pela Avenida Boa Viagem, foi ovacionada pelos banhistas, que se amontoavam no calçadão, e pelos moradores, que acenavam das janelas dos edifícios. Se chegou ao destino sem ocorrências, nem quebras de protocolo.

Já no palácio a recepção foi mais glauberiana.  Os convidados receberam com antecedência uma espécie de tutorial sobre como agir na presença de Rainha e do seu marido, o Duque de Edimburgo. Exigia-se obediência aos protocolos. Nem a rainha nem o príncipe concediam autógrafos; não recebiam presentes, nem aceitavam que lhes beijassem as mãos. Tampouco se deveria dirigir a palavra a casal. Mas se porventura os dois falassem com a alguém, o tratamento deveria ser “Her majesty”, no início, “ma’am” no meio do papo, e “Her majesty”, no final. Com o príncipe, “His highness”, “Sir” ,e mais uma vez “His highness”.

Era difícil conter o excitamento dos convidados. Bebidas leves, sucos de frutas foram servidos. Sua majestade, diz-se, adorou o suco de pitanga. Sem exatamente quebrar o protocolo, uma madame levou uma queda ao escorregar em cascas de uvas (do vale do São Francisco) atiradas no assoalho. Mas saiu ilesa do incidente. Porém Dom Hélder Câmara quebrou o protocolo. Foi apresentado ao casal real, deu um tempinho, e saiu de fininho, sem nem fazer uma boquinha. Minutos depois foi visto na pracinha do Diário, numa lanchonete, degustando um sanduíche.

Eis que, quando Elizabeth e Phllips iam conferir as telas de Lula Cardoso Ayres e peças de Francisco Brennand, numa exposição montada especialmente para os nobres ingleses, o palácio ficou às escuras. Aliás, o Recife inteiro. Culpa de uma pane na estação da Chesf no Bongi. Um vexame, mas que o casal real tratou com a propalada fleuma britânica. O príncipe até segurou um candelabro para que pudessem ver as obras de arte. Foram presenteados por Nilo Coelho com duas telas de Cardoso Ayres, e peças de Brennand. A energia só voltou quando a comitiva real preparava-se para deixar o palácio do governo e se dirigir ao iate Britannia, ancorado há uma semana no cais do porto, no Bairro do Recife. No dia seguinte o iate levou a comitiva para Salvador.

GOLEADA

Com uma semana sem ter muito o que fazer, a tripulação do Britannia fez um pouco de turismo pela capital pernambucana, conheceu as pensões alegres do bairro, curtiu as praias do Pina e Boa Viagem, e até formou um time para uma partida de futebol. Os ingleses jogaram contra o time reserva do Santa Cruz. Levaram uma sonora goleada: 12×1. Pelo time do Santa atuaram dois futuros ídolos da torcida tricolor: Ramon e Givanildo.

No dia 2 de novembro, Feriado de Finados, o iate partiu para Salvador, levando na bagagem, além das obras de arte, 50 caixas de abacaxi selecionados, presente da Maguary. Outro presente inusitado, a rainha ganhou em Brasília: um retrato emoldurado e autografado pelo marechal Costa e Silva, o presidente militar da vez. Voltou ao Recife 18 dias mais tarde, e daqui voou de volta à Londres.

TÓPICOS

Depois da rainha, a realidade. Dezenas de pessoas prestaram queixas na Delegacia de Roubos e Furtos. Enquanto perfilavam nas calçadas esperando o cortejo que trazia sua majestade, suas casas foram visitadas pelos amigos do alheio.

Quando o iate real preparava-se para zarpar para a capital baiana, uma orquestra no Marco Zero, então a Praça Barão do Rio Branco, tocava clássicos do frevo. No convés, uma orquestra executavam A Banda, de Chico Buarque, e Pata-Pata, o hit internacional da sul-africana Miriam Makeba.

O Recife tornou-se a primeira cidade do continente sul-americano a receber uma majestade europeia, e certamente pela sua posição estratégica. A autonomia de voo das aeronaves que vinham da Europa terminava na capital pernambucana. Aqui pousavam para abastecer. Por isso a comitiva real retornaria ao Recifes. Mas foi imediatamente do aeroporto ao cais do porto. Pernoitou no Britannia e, na tarde do dia seguinte, retornaram para a Inglaterra.

Em 1960, o Recife foi também a primeira cidade do país a receber a visita do imperador da Etiópia (então Abissínia), Hailé Sellasié. Ele pernoitou no palácio do Campo das Princesas e viajou em seguida para a recém-inaugurada Brasília. Selassié voltou às pressas ao Recife, de onde partiu para Adis Abeba, a fim de combater os adversários (entre os quais um filho seu) que lhe deram um golpe de estado.

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