Era 1962, os jovens bossanovistas até então faziam apresentações na TV, em universidades. O showbizz brasileiro engatinhava. A bossa nova descontruíra a tradicional música nacional. Criou um racha. O novo contra o velho. O pessoal não entendeu que novo e velho convergiam para o primeiro LP de João Gilberto, Chega de Saudade, de 1959. João trouxe Dorival Caymmi para junto de Tom Jobim. De repente, a bossa estoura nos Estados Unidos. E a turma que a criou foi convidada para se apresentar no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Era muita gente, os próprios americanos não souberam montar uma estrutura adequada. O pessoal nem sequer ensaiou direito. O concerto, no dia 21 de novembro de 1962, foi, tecnicamente, um fracasso. Mas um sucesso mercadológico.
Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro sussurra o elogio, e berra a crítica (não exatamente nessas palavras). Os erros, equívocos, problemas no som, algumas resenhas desfavoráveis na imprensa americana, foram amplificados no Brasil. O jornalista José Ramos Tinhorão, de exacerbado nacionalismo, assumiu-se inimigo figadal da bossa nova, que considerava uma vertente do jazz, não da música popular brasileira. A revista Senhor (das melhores e mais requintadas já publicadas no país), um ano depois do concerto, abriu um generoso espaço para discutir a BN. Tinhorão teve direitos a dois artigos. Alguns trechos do mais mais virulento.
“Nos Estados Unidos cujo jazz é o responsável pela bossa nova brasileira, o new beat (como intitulou a BN o saxofonista tenor Zoot Sims) fez sua entrada triunfal depois que os músicos do American Jazz Festival ao Brasil, em 1961, levando a bossa nova da descoberta de um novo caminho para o jazz. O mais entusiasmado de todos, o flautista Herbie Mann, voltaria dois meses depois, sozinho, para gravar com músicos brasileiros, aparecendo então, com pequeno intervalo, os seus LPs Brazilian Things e Jazz Bossa Nova. Simultaneamente, Zoot Sims grava, para a Colpix, Bossa Nova Means Samba With A Beat, enquanto o sax-tenor Coleman Hawkins, também integrante do American Jazz Festival, lançava o seu muito pessoal Samba Beans (“Bean” é o seu apelido)… O lançamento da bossa para o grande público, porém, viria com o LP Jazz Samba, da Verve, com o sax-tenor Stan Getz e o guitarrista Charlie Byrd, os únicos – segundo o crítico americano Clare Fisher – que empregaram os mesmos ingredientes incorporados de uma maneira impressionante, oito anos antes, pela dupla Laurindo de Almeida e Bud Shank nos seus LPs Braziliance 1 e 2 …”
Os nomes que Tinhorão cita no texto só reforçam o impacto que a bossa nova surtiu entre alguns dos mais importantes músicos americanos de jazz, porém, ele analisa isto como prova de que a BN era muito mais jazz, ou só jazz, do que música brasileira. Sobre o concerto no Carnegie Hall, ele o atribui a uma jogada comercial de Sidney Frey, presidente da gravadora Audio Fidelity e da American Jazz Foundation:
“Muito cauteloso em matéria de dinheiro o senhor Sidney Frey chegou ao Brasil no início de novembro de 1962 interessado, principalmente, em João Gilberto, mas disposto a pagar apenas as passagens dos bossanovistas que se candidatassem a tomar parte no espetáculo. Ofendidos pelo pão-durismo do Sr.Sidney Frey, os rapazes da bossa nova aceitaram participar do espetáculo no Carnegie Hall, ma afirmando que iriam por conta própria. Movimentaram-se rapidamente, e o Itamarati foi quem pagou as passagens. A apresentação perante três mil pessoas (poltrona a US$ 4.80, e balcão a US$2.80), começou às 20h30, da quarta-feira, 21 de novembro de 1962, e foi um fiasco.
Os músicos eram amadores, os cantores eram os próprios compositores, (com exceção de Agostinho dos Santos), o Sr.Sidney Frey estava mais interessado nos microfones que gravava as composições, do que nos que as transmitiam para o público. Muitos nada tinham a ver com bossa nova (como a cantora Carmem Costa), e o lamentável Antonio Jobim, o Tom, meteu-se a cantar o samba Corcovado e, no meio, esqueceu a letra. Para coroar o insucesso com o ridículo, o violonista Boa Sete, que fisicamente não se distingue muito de um gorila, tocou violão nas costas, numa macaqueação que tornou o Carnegie Hall, pela primeira vez na história, em um autêntico circo”
Neste tristemente célebre artigo, com excessos de ultranacionalismo, racismo, e má vontade, Tinhorão cita que os bossanovistas ainda se apresentaram no Greenwich Village, numa casa de espetáculos em Washington D.C, e na Casa Branca “onde a Sra. Kennedy, principalmente, ficou encantada com o frescor que o jazz norte-americano assumia, na lírica interpretação dos jovens brasileiros”. Jose Ramos Tinhorão enfatizava que Sidney Frey tomou um prejuízo de nove mil dólares, e concluia: “No momento, a bossa nova cai na rotina nos Estados Unidos parecendo circunscrever seu interesse aos meios do jazz, que vêm na nova concepção musical uma espécie de volta às origens, através da cadeia de offbeats melódicos que fizeram tanta voga nos Estados Unidos entre 1930 e 1940, e hoje reaparecem na bossa nova”
Este artigo intitulado Bossa de Exportação deflagrou polêmicas e discussões. A edição da revista Senhor, no qual foi publicado, é um precioso documento de como a BN criou um cisma na música brasileira, até então bela e acomodada. Na revista há artigos do maestro Diogo Pacheco (Bossa nova é/e música séria), mais um de Tinhorão (Bossa nova vive um drama: não sabe quem é o pai), de Nemércio Nogueira Santos (Gato que nasce em forno não é biscoito), Júlio Hungria (Do Teatro de Arena da Arquitetura ao Carnegie Hall), mais um de Reynaldo Jardim, que merece ter o primeiro parágrafo transcrito:
“Influência não é nenhuma praga, é um capítulo obrigatório na história da arte. Aparcela de influência do jazz na bossa nova não constitui humilhação para ninguém. Jazz e Wall Street são coisas bem diversas. Jazz é a música representativa do povo americano em sua expressão mais pungente e verdadeira. É a música do negro. E veio do negro o velho samba. Logo, não tem importância negativa a influência do jazz em nossa bossa nova. É apenas influência de formação cultural, e não de informação ideológica”.
Viva o amadorismo!!!
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viva
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