Frevo: o pernambucano montou, ao longo dos anos, um repertório carnavalesco que nenhuma terra tem

O repertório cantado no carnaval pernambucano é a prova viva de que o povo gosta de música de qualidade desde que ela lhe seja oferecida. Ou seja, o povo consome o que lhe dão. E o que lhe deram ao longo de cem anos de frevo gravado, o próprio povo tratou de só guardar o que primava pela excelência, levando Pernambuco a cantar, no Carnaval, um repertório com uma qualidade músical que não é normal.

Em 2012, durante o Garanhuns Jazz Festival, polo alternativo do Carnaval de Pernambuco, a gente almoçava com a produção do GZF e os músicos americanos Russel Ferrante e Bob Mintzer, do Yellowjackets. Rolou papo sobre frevo, e alguém mostrou a Mintzer, a partitura de um frevo. Ele deu uma olhada, e questionou, meio brincando, acho que ao produtor do festival, Giovanni Papaleo: “Alguém consegue tocar  isto?” A resposta: “Consegue”. E o próprio Bob Mintzer conseguiu. Não por acaso, ele um dos grandes saxofonistas em atividade no jazz.

Pois é, o frevo de rua é a mais complexa música de uma festa popular no Brasil. Como assinalou Valdemar de Oliveira, no seu célebre ensaio Frevo, Capoeira e Passo. Não existe frevo de rua vindo do folclore, com origem perdida no tempo, ou aqui chegado com os colonos portugueses. Todo frevo de rua tem autor certo e sabido. Para escrever um frevo instrumental, o compositor precisa ler e escrever partituras, saber arranjar e orquestrar, definir o que tocará cada naipe.

Ironicamente, o frevo mais popular do carnaval de Pernambuco Vassourinhas é o único que vem de uma singela cantiga lusitana, “Se esta rua fosse minha”, adotada pelo Clube Carnavalesco Mixto Vassourinhas, a princípio com uma letra improvisada. Porém, na primeira década do século 20, ganhou arranjo e orquestração, não se sabe de que maestro, talvez até mesmo de Mathias Theodoro da Rocha, a quem a autoria de Vassourinhas é atribuída. Na maioria das gravações, em parceria com Joana Batista, que não era compositora. Ela não é citada nem mesmo entre os fundadores do clube. Enquanto Mathias da Rocha foi até sua morte, em 1907, o principal compositor do Vassourinhas. No LP Viva o Frevo (1968), da Orquestra de Frevos Mocambo, dirigida pelo maestro Nelson Ferreira, com repertório que é uma história resumida da evolução do frevo. Nesse LP,  O Frevo nº1 de Vassourinhas recebeu o título de Se Essa Rua Fosse Minha, e autoria apenas a Mathias da Rocha.  

Não por acaso, vários dos principais autores de frevos de rua tocaram na Orquestra Sinfônica, ou na Banda Sinfônica, ambas da Prefeitura do Recife. Levino Ferreira, autor do que é considerado o mais belo dos frevos de rua, Último Dia, tocava na sinfônica do Recife.  Alguns frevos de rua se aproximam da música erudita, é o caso, por exemplo, de Gostosão, de Nelson Ferreira, uma composição de estrutura moderna e inovadora, que o maestro continuou com Gostoso e Gostosinho.

Nelson foi também autor de antológicos frevos canção, alguns visando o sucesso no Carnaval, boa parte ficou esquecida, sobretudo as circunstanciais, em que aproveitavam expressões em voga, como Um Instante Maestro, nome de um programa de TV do apresentador Flávio Cavalcanti, ou Pedro Bó, personagem do programa Chico City. Nelson é autor de um dos maiores clássicos do carnaval brasileiro, com uma composição que se tornou o sucesso mais improvável de uma música carnavalesca, o frevo canção Evocação, gravado em 1956, para a folia de 1957.

A melodia é assoviável, mas sofisticada, a letra longa cita blocos e foliões dos anos 20 e 30,  já naquela época lembrados por poucos. Mesmo assim, foi cantada não apenas em Pernambuco, como no Rio de Janeiro, de lá se espalhou pelo Brasil. 67 anos depois continua sendo uma das mais entoadas em Pernambuco.
Curioso, como o folião pernambucano selecionou os frevos canção mais requintado para formar um repertório carnavalesco. Poucas são composições ocasionais, de estrofes repetitivas. Sabe lá o que isso, ou Hino do Batutas, de João Santiago, além da melodia que foge do lugar comum, tem letra com rimas internas, pouco comum neste tipo de música: “Batutas tem atração que/ninguém pode resistir/um frevo deste que faz/demais a gente se divertir”.

Outros clássicos do nosso carnaval é a trilogia de frevos de Antonio Maria dedicada à capital pernambucana, sua cidade natal. Todos de letras e músicas primorosas. Recife, Frevo nº 2 do Recife, Frevo nº 3 do Recife. O primeiro deles, Recife, conhecido como Frevo nº1 do Recife antecipa-se em cinco anos a Evocação, de Nelson Ferreira na temática nostálgica. Aliás, Evocação passou a ter o nº1 no título, depois que o compositor escreveu uma série de evocações.

Luiz Bandeira foi quem lançou o Frevo nº2 de Antonio Maria, mas ele próprio assina alguns dos mais refinados títulos do repertório carnavalesco pernambucano, incluindo frevos instrumentais, como Carabina, lançado por Sivuca em 1956, e até hoje um dos frevos de rua mais tocados. No frevo canção, Bandeira legou composições antológicas, como a ubíqua Voltei Recife (mais uma na linha evocativa), gravada pelo compositor em 1958, Novamente, lançada por Claudionor Germano, em1968, ou Bom Danado (com Ernâni Séve), também lançada pelo autor em 1954.

O frevo de bloco tem uma característica que vem de Antônio Maria reforçada por Nelson Ferreira, a ênfase no passado, sempre maravilhoso e romântico, e em melodias belas e melancólicas. Uma das mais bonitas é Valores do Passado, de Edgard Moraes, de 1962, que cita blocos dos anos 20, obrigatória no que se convencionou chamar de blocos líricos, que interpretam um repertório único em beleza no carnaval brasileiro. Alguns deles: Madeira do Rosarinho, de Capiba,  de 1962, Último Regresso, de Getúlio Cavalcanti, de 1982, Bloco da Vitória, de Nelson Ferreira, 1957,  A Dor de Uma Saudade, Edgard Moraes, Recife Manhã de Sol, J.Michiles, 1966.

Voltando aos frevos canção, é curiosa a seleção darwiniana que se  fez  levando para posteridade quase sempre os frevos atemporais e musical mais consistente. Ô Maré, de Rudi Barbosa, autor de ótimos frevos, foi o maior sucesso do carnaval pernambucano de 1969. Aproveitava uma expressão de então “Ô maré” significava algo bom. Podia ser um galanteio a uma moça bonita. Passados 53 anos ninguém se lembra, nem da expressão nem do desse frevo.

Nos anos 60, o frevo esteve no auge comercialmente. Surgiram dezenas de compositores, como René Barbosa, Manoel Gilberto, Gildo Branco, entre outros, com frevos canção campões do carnaval, mas que não continuaram a ser cantados. Caso de Pancadinhas de Amor, de René Barbosa, de letra impensável nos tempos atuais: “Você que leva o dia a passear/e à noite ainda vai ao quem me quer/tá enganada, tá enganada/se tá pensando que não se bate em mulher”.

O citado Gildo Branco emplacou alguns sucessos que caíram na obscuridade, pela melodias simples, e letras que se tornaram datadas. Ele foi o dono do maior sucesso do carnaval de 1962, com a Lua Disse, que tinha como tema o astronauta russo Yuri Gagarin. Apesar de ótima melodia logo seria esquecida. Ariano Suassuna, num artigo sobre a música de Capiba ressaltava a habilidade de Lourenço da Fonseca Barbosa em criar melodias de qualidade.

Certamente este é o motivo porque Capiba foi o compositor que por mais tempo cravou sucessos e clássicos no carnaval pernambucano, de 1934, ano de É de Amargar, a 1980 com Trombone de Prata. Ele se gabava de não compor frevo empregando clichês carnavalescos. Nada de colombinas, pierrôs nem arlequim.
É como se a partir de 1980,  ele passasse o bastão para novos autores. Um desses, o caruaruense Carlos Fernando, que levou o frevo a ser gravado por medalhões da MPB, como Chico Buarque, Gil ou Caetano Veloso, no projeto Asas da América. Uma série de álbuns com  composições de impecável riqueza de melodias e letras. Que aprimoraram ainda mais o repertório  do carnaval pernambucano. Comparável  a Carlos Fernando,  J.Michiles não apenas reforçou este repertório de excelência, como fez muito sucesso com clássicos feito Bom Demais, Queimando a Massa, Diabo Louro, Roda e Avisa (com Edson Rodrigues). Acrescente-se a esses dois, compositores como Lula Queiroga, com Energia, ou André Rio, com Chuva de Sombrinhas (com Nena Queiroga, Beto Leal). E nem citei os frevos do clubes, troças, e blocos. Os do Elefante e da Pitombeira são composições das mais bonitas do carnaval brasileiro. Não é a mania de grandeza dos nativos, mas  Pernambuco tem um repertório carnavalesco, com um apuro, que nenhuma terra tem. 

Na foto: de 1959, Lourival Oliveira, Sebastião Lopes, Zumba,  Nelson Ferreira, Claudionor Germano, e Carnera.

3 comentários em “Frevo: o pernambucano montou, ao longo dos anos, um repertório carnavalesco que nenhuma terra tem

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  1. Evoé Teles Toques!

    Sei não responder outro modo, se ler: “repertório carnavalesco …do pernambucano…” fascinante! Qdo em livro – “roda, roda, roda e avisa” a esta pernambucana (Desde criança sou gringa na terra q.eu nasci/proto-cordel…dia virá)🥰Grata, deweras☺️

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