Jards Anet da Silva, ou melhor, Jards Macalé é um artista essencial para a música brasileira. Com 51 anos de carreira, contados a partir do primeiro LP, Jards Macalé (Philips), ele nunca frequentou as paradas. Sua composição mais conhecida, ou mais cultuada, Vapor Barato, parceria com Waly Salomão, só fez sucesso entre os que curtiam a música alternativa da época. A então “alterna” Gal Costa a gravou, em 1971. Vapor Barato fecha o álbum duplo Gal a Todo Vapor. A música seria, relativamente, popularizada, no início deste século, quando se tornou um ponto alto dos shows de O Rappa, e teve uma citação em À Flor da Pele de Zeca Baleiro. A própria Gal retornou à canção algumas vezes nas últimas duas décadas.
Mas a essencialidade de Jards Macalé é exatamente não depender do sucesso para tocar a carreira. É dos poucos veteranos da MPB que nunca fez concessões. Tentaram colar nele a pecha de “maldito”, um rótulo criado pela imprensa. Nenhum dos “malditos” contemporâneos de Macalé merece o adjetivo, ao menos da forma como ele passou a ser entendido anos mais tarde. Até porque alguns até tocaram muito no rádio. Luiz Melodia desfrutou um período de grande popularidade. Raul Seixas outro “maldito” foi uma linha de montagem de hits, Cesar Sampaio chegou apenas uma vez às paradas, botou seu bloco na rua e ele continua aí até hoje. Maldito é o que não criava música visando vender milhares de cópias, rezando pela cartilha em voga. Os que ousavam.
O “maldito” também veio de carreiras atribuladas, que levavam ao rompimento de contratos com gravadoras. Neste atributo, Alceu Valença chegou a ser assim enquadrado. O epíteto valia também para fracasso de vendas. É o caso de Macalé, que ao longo da carreira, raramente lançou mais de um disco pelo mesmo selo. Isto até encontrar abrigo na Biscoito Fino, selo pequeno carioca, que se tornou reduto da MPB mais refinada. Pelo BF Macalé tem cinco discos. O mais recente é Coração Bifurcado, que chegou às plataformas nessa sexta-feira. Um disco em que o amor é o fio condutor, o leit-motiv.
Há 50 anos, com o parceiro Waly Salomão, lançou a linha da morbeza romântica. O neologismo “morbeza” é a junção de “mórbido” com “beleza”. “Nós assumimos a consciência desta morbeza romântica como uma forma de elevar ao máximo grau a herança romântica que trazemos, porque esta herança é a própria música brasileira, é tudo, é Lupicínio Rodrigues, é Nelson Cavaquinho, são os choros, as modinhas, é todo o romantismo, que inclusive é muito mais forte nesses artistas mais antigos do que em nosso próprio trabalho”, o texto entre aspas de Jards Macalé, em entrevista, de 1973, ao semanário alternativo Opinião.
Junção de “mórbido” e “beleza”, a morbeza romântica foi uma provocação, não chegou a se firmar na cena musical da época. Restringiu-se a Macalé e Waly. Em Coração Bifurcado ele retoma o amor como tema, mas agora como antídoto à cólera, tanto a peste que assolou o mundo por dois anos, quanto a cólera como estado de espírito que passou a assolar o país desde 2018. As canções foram compostas num dos períodos mais tensos já vividos no Brasil: um governo em que a intolerância dava o tom, com o horror de um vírus que mataria centena de milhares do Oiapoque ao Chuí.

A morbeza romântica na fase mais plúmbea da ditadura militar, o romântico contra a morbidez no passado bem recente. A produção do disco aconteceu ao longo de 2022. Macalé convocou o parceiro das antigas, José Carlos Capinam, Ronaldo Bastos, compositor igualmente das antigas, mas com quem só agora encetou parcerias, e uma geração de talentosos autores, músicos, intérpretes, uma vertente da MPB influenciada por Jards Macalé. Rômulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Clima, Guilherme Held, Pedro Dantas. E ainda, as vozes privilegiadas de Maria Bethânia, Ná Ozzetti, Alice Coutinho e Nara Leão (sic).
Além da banda base, tomaram parte no disco, nomes como Jorge Hélder ou Cristóvão Bastos, Jurim Moreira (a trinca toca na banda de Chico Buarque). Nas faixas com sopros, os músicos foram dirigidos por Antonio Neves. Alguns dos nomes Rui Alvim (clarinete e clarone), Aquiles Moraes (trompete e flugelhorn), Eduardo Santana (trompete e flugelhorn), Oswaldo Lessa (flauta e sax tenor), Everson Moraes (trombone e oficleide), Jonas Horcheman (trombone) e Leandro Dantas (trombone baixo). Em Mistérios do Nosso Amor, com Maria Bethânia, a banda é reforçada por Antônio Rocha (flauta), Aquiles Moraes (trompete), Rui Alvim (sax alto e clarinete) e Yuri Ranevsky (violoncelo).
Já por si um disco que passa por longe do conformismo e mesmismo estéticos que assolan a música brasileira, Coração Bifurcado é uma ousadia na qual estão embutidas ousadias. Uma é a inclusão de uma gravação feita por Nara Leão há 57 anos, de Amo Tanto (uma modinha que Macalé compôs na adolescência), outra, é uma espécie de remake de Dindi, de Tom Jobim, numa parceria de Macalé com Alice Coutinho. De certa forma, não deixa de ser ousada, a sonoridade de boate, pré-bossa nova, em O Amor Vem da Paz, com letra de Ronaldo Bastos.
Com Rodrigo Campos foi composto o rock, cerzido por guitarras, de A Foto do Amor. Na Ozzetti está impecável em Simples Assim cumprindo com louvor, uma empreitada difícil: substituir Gal Costa, que iria gravar a canção para este álbum, dedicado a ela. A canção é parceria com Rômulo Fróes, que assina a direção musical do disco, produzido por Guilherme Held, Pedro Dantas, Rodrigo Campos e Thomas Harres.
Os 51m30s de música terminam com Cante (outra que Macalé assina sozinho), uma sugestão para que se solte a voz, um “mais que nunca é preciso cantar”, da Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, de Vinicius e Carlos Lyra, lançada em 1962, pelos Bossais, grupo formado por Alaíde Costa, Claudette Soares, Pedrinho Mattar e Matias.
Coração Bifurcado é o melhor disco de Jards Macalé nestas primeiras décadas do século, e certamente estará incluído entre os melhores do ano da graça de 2023. Nele até o que pode ser tomado como defeito, a dicção (boa dicção nunca foi o forte de Macalé), contribui para tornar o álbum ainda mais instigante.
Êh Cantareira, êh cantareira…
Maravilha de resenha Teles, botou pra torar, como sempre!!! Cadê uma provinha do álbum falado, a BF não liberou?
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ãlbum falado? Refresque-me a memória
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Você escreveu sobre o novo álbum de Macalé, certo?!
Mas, na resenha não um som sobre o resenhado, como de hábito!
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