Uma pequena história da fuleiragem music

Escreve-se a palavra “forró” no espaço de pesquisa do Spotfy.  De cara aparece o playlist: Forró de Vaquejada – Pra Vaqueirama de Verdade. Na foto, o cantor Raí Saia Rodada. Para os leigos: o “Saia Rodada” não é porque Rai seja mais um artista trans. É pra lembrar que ele foi vocalista da Saia Rodada, uma das bandas de maior sucesso da fuleiragem music, nos primeiro anos deste século, no Nordeste.

Zé di Camargo & Luciano, Leandro & Leonardo, João Paulo & Daniel, e demais sertanejos românticos mandaram no mercado musical brasileiro com pagode e axé, no anos 90. Na segunda metade da década, em  Fortaleza, surgiram grupos de lambada estilizada, que logo se tornaram populares na capital cearense, animando bailes que duravam cinco, seis horas. Vários músicos se revezavam no palco. Em poucos anos, as bandas formatam um modelo que servia a todas. Foram impulsionadas pela eficiente divulgação da gravadora Som Zoom, do empresário Manuel Gurgel, iniciada há 30 anos. Em 1997, as bandas contratadas pela SomZoom teriam sua música difundida pela rede de emissoras Som Zoom Sat, alcançado toda a região Nordeste.

Bandas como Mastruz com Leite, Cavalo de Pau, Catuaba com Amendoim, Mel com Terra, passaram a fazer sucesso fora do Ceará, a vender discos, e a reunir multidões em suas apresentações. Uma música que a princípio foi rotulada de “Oxente Music”. Suas canções continham letras românticas ou bem-humoradas. Bandas foram sendo criadas em vários estados nordestinos, e bancadas por empresários bem sucedidos viram que ali estava um negócio lucrativo. As facilidades proporcionadas pelo avanço da web não mais exigiam que os grupos tivessem base nas capitais. Dois dos gruposa mais requisitados, nos primeiros anos do século 21, nasceram no interior. A Limão com Mel, de Salgueiro, no sertão pernambucano, e Os Magníficos, de Monteiro, no sertão paraibano.

Súbito havia tanta banda nessa, digamos, cena, que quase todas anunciavam o nome no meio da música, para eu não fossem confundidas com uma concorrente, A sonoridade era igual, numa ou noutra havia vocalistas com timbres facilmente identificável, feito Batista Lima, da Limão com Mel, mas quase tudo soava igual. As cantoras, com exceções,, seguiam a linha Ivete Sangalo. Até porque as bandas foram influenciadas pelo gestual e maneirismos dos artistas d axé music, instigando a plateia a jogar os braços pro alto, a bater palminhas, e por aí vai.

Várias passaram a erotizar coreografias com calipígias dançarinas, e daí foi um pulo para as letras de duplo sentido, não raro, enfaticamente, de um sentido só. Estas prevaleceram, e com melodias indigentes, letras fincadas no tripé: cachaça, rapariga e cabaré, tendo como complemento a caminhonete de luxo. Um bom exemplo da temática da fuleiragem nessa época está no álbum da pioneira Mastruz com Leite ao Vivo Vol.IV. Uma das faixas tem o sugestivo título de Ela me Traiu Usando o Resto das Camisinhas (Robério Soares/Marcélio Amaro). Uma dos hits mais regravados dessa fase, inclusive pela Mastruz com Leite, foi Bomba no Cabaré (a autoria parece ser de  Dadá de Moreno e Maninho Santana), a letra é de um primor de grosseria, merece ser transcrita na íntegra:

“Jogaram uma bomba, no cabaré…/voou pra todo canto pedaço de mulher/foi tanto caco de puta voando pra todo lado/dava pra apanhar de pá, de enxada e de colher/no meio da rua tava os braços de Teresa/no meio-fio tava as perna de Raqué/em cima das telha os cabelo de Maria/no terraço de uma casa tava os peito de isabé/aí eu juntei tudo e colei bem direitinho/fiz uma rapariga mista/agora todo homem quer/pode jogar uma bomba lá no cabaré/que eu junto os cacos das puta/pra fazer outra mulher”.

As bandas, isto não se pode negar, souberam entender o mercado. Quer dizer, seus empresários. Estouraram quando a pirataria comportava-se como colônia de cupim supervoraz, corroendo a indústria fonográfica, levando-a a se repensar, se reconstruir, e entrar de ponta cabeça no mundo digital. Como ninguém vendia mais discos, as bandas, passaram a produzir seus próprios CDs, envelopados, com gravações ao vivo, copiada da mesa de s om. Vendiam por preços simbólicos, ou distribuíam gratuitamente nos shows. O importante era os fãs conhecerem as músicas. Esta tática foi revolucionária. Mostrou-se que se poderia vencer no mercado musical dispensando a estrutura das gravadoras, marketing e divulgação convencionais, incluindo ida à TV e rádio.

Os sertanejos assim foram escanteados do milionário período junino nordestino, que é muito maior do que o carnaval. No Carnaval, contam-se nos dedos das mãos as cidades que realizam megafolias, e ainda sobram dedos. No São João contem-se todos os dedos, dos pés e mãos, e não dá pro começo. Dezenas de municípios produzem arraiais gigantes. Em, rigorosamente, todas as cidades da região o São João é a festa mais importante do ano, o que abre um imenso leque para contratações de artistas.

VOLTA POR CIMA

Não pode contra o inimigo, junte-se a ele. Aí por volta de 2010, os sertanejos deram um chute no lirismo, outro no sabiá, e adotaram a mesma temática ultraniilista da fuleiragem: cachaça, mulher, gaia (chifres) e zona, com abertura para a inevitável caminhonete ostentação, e um pouco de tecnologia de estúdio nas canções. Sertanejo é tech, sertanejo é agro, e agro é pop. Contratados por grandes gravadoras, sobretudo pela Som Livre, receberam os holofotes dos programas de maior audiência da TV Globo, e voltaram a dominar os maiores arraiais juninos do Nordeste, e predominando em Campina Grande e Caruaru.Porém, entre uma alusão à rapariga, ou a uma lapada de gin com energético, encaixando um viva a Luiz Gonzaga.

As bandas estavam meio em baixa, quando foram descobertas pelas principais gravadoras do país, tiveram música em novela, receberam uma repaginada no visual. Alguns vocalistas deixaram de ser anônimos, as bandas não tinham rosto. Wesley, Xand, Solange, por exemplo, desfalcaram, respectivamente, a Garota Safada e a Aviões do Forró. A trinca foi projetada em carreiras solo bem sucedidas. Claro, acolhidas no Sudeste, as bandas de fuleiragem abandonaram a linguagem chula, enquanto as coreografias eróticas foram amaciadas. Hoje apenas o sotaque diferencia fuleiragem de sertanejo, a música é quase a mesma.

Os sertanejos predominaram nos arraiais de Campina Grande e Caruaru, em 2019, as bandas agora dividem os espaços com os forrozeiros autênticos, e artistas da MPB que trafegam pelo universo do forró, mas já predominam, e o grande público, que frequenta festivais popularescos, digere fácil qualquer novidade musical, como aconteceu recentemente com a pisadinha, que existia há anos, mas foi reformatada e vendida como a nova onda do forró.

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