O tempo passa, o tempo voa, e com ele se modificam gostos e conceitos. Não há exemplo mais adequado à asserção do que a revalorização da dupla baiana Antonio Carlos & Jocafi, de grande popularidade no Brasil até a primeira metade dos anos 70. Sucesso de público, mas não de crítica. O principal argumento da crítica apontava que a dupla era demasiadamente comercial, e se valia de uma fórmula para agradar. Os próprios Antonio Carlos e Jocafi contribuíam para reforçar esse viés da imprensa:
“Nós achamos que é preciso mudar um pouco, e queremos agora entrar numa jogada nova, uma espécie de samba quase pop, um negócio bem moderno, mas isto só lá para agosto. Fazer música é um trabalho como outro qualquer”, afirmação proferida numa entrevista ao Correio do Povo, de Porto Alegre, em 1973. Também não escondiam que realmente tinham um atalho para suas composições chegarem ao povo: “Para fazer sucesso é preciso que uma música lembre outra. Alguma coisa que o público pense que já ouviu, em algum lugar”, a O Pasquim, em 1974.
Cinco décadas mais tarde, a dupla virou cult, é influência assumida da geração que está dando as cartas no cenário musical nacional. O conterrâneo Russo Passapusso (do BaianaSystem, e também com carreira solo) é um dos que admitem a admiração por Antonio Carlos & Jocafi, selada agora ao dividir um álbum com a dupla, Alto da Maravilha, que aterrissou nessa segunda-feira, 7 de novembro, nas plataformas digitais.
No texto de divulgação do Alto da Maravilha a música é definida, por Antonio Carlos “a síntese da união musical entre o nosso afrofunk e o afrobeat, com a poderosa e potente atmosfera ancestral e afrofuturista de Russo Passapusso”. Soa empolado para dois artistas que se notabilizaram pela comunicação direta de suas canções, sambas em sua maioria. Os dois maiores hits de Antonio Carlos & Jocafi, Você Abusou e Toró de Lágrimas disputaram pau a pau as preferências do distinto público com os igualmente despojados sucessos de Toquinho & Vinicius de Moraes (o poeta recebeu algumas traulitadas por algumas letras pouco elaboradas feitas para melodias de Toquinho).
Antonio Carlos & Jocafi foram redescobertos pela turma do vinil, assim como tem acontecido com outros artistas de décadas passadas aos quais vêm sendo atribuídos qualidades que os seus contemporâneos não constataram. Benito de Paula, por exemplo, que na década de 70 encaixava-se entre o popularesco e o samba joia (o mais antigo antecessor do pagode) já há alguns anos tem seus primeiros LPs disputados.
A conjunção da música da dupla com a Passapusso parecia a mistura de água e óleo, encontro de gerações e estilos díspares. Mas funciona. O músico do BaianaSystem carrega nos ritmos, enquanto Antonio Carlos e Jocafi exercem o talento para melodias cativantes, e daquelas que a gente acha que se parecem com algo que já escutamos. É o caso de Veneno, um baião funkeado, com um arranjo engenhoso, com Curumin encarregando-se de programações, violão e sintetizador. No entanto ela é mais de Passapusso do que da dupla.
Tem faixas que são bem a cara de Antonio Carlos & Jocafi. Forrobodó é uma delas, um coco de embolada, revestido de programações, um forró futurista (com a sanfona de Marcelo Jeneci). É a mais antiga do álbum, foi iniciada há meio século. A dupla vai de qualquer gênero, chegou a gravar com Luiz Gonzaga. Já Merece Um Tapa está mais para a Russo Passapusso. Louve-se os setentões que se adaptaram às novas sonoridades estéticas. Em Ponta Pólen a dupla enceta parceria com Curumin, que assina a produção com Zé Nigro e Lucas Martins (que também participam, nos vocais de apoio, e no instrumental de todo o disco). Puxam pela memória e trazem das pérolas de domínio popular duas já usadas por Caetano Veloso, Marinheiro Só, e o Vapor de Cachoeira fundidas em numa só canção, uma brincadeira da dupla, que Passapusso incluiu no disco.
Um repertório com 13 faixas, boa parte pra tocar no rádio, se rádio ainda tocasse música fora da caixa. A balançada Mirê Mirê, lembra Babá Alapalá, de Gilberto Gil (do álbum Refavela, de 45 anos atrás). Não por acaso, Gil divide os vocais nesta faixa com os donos do disco. Outra pra tocar no rádio (por rádio entenda-se todos os vetores através dos quais a música chega ao ouvinte) é Olhar Pidão, interpretada por Russo Passapusso e Karina Buhr (baiana que foi morar no Recife ainda criança), quase uma balada.
O álbum fecha com Catendê, cujo título leva a se pensar em Moa do Catendê, uma das primeiras vítimas da polarização insana que desabou sobre o povo brasileiro. É também uma balada, com uma melodia bem Antonio Carlos & Jocafi, e bela letra. Jocafi comentou sobre esta música, cantada por Curumin: “Quem somos nós para falar de catendê? Catendê é Ossaim, mas depende do lugar. Ele é Ossaim em Angola e também é um orixá do tempo. Catendê sendo Ossaim é o orixá das folhas, da mata, das árvores e em alguns lugares da África ela é orixá do tempo, mais no sentido do clima”. Água e óleo não se unem, mas toda regra tem exceção, e este disco é exceção à regra. Duvido nada que, a partir deste álbum, Antonio Carlos & Jocafi sejam escalados para os festivais onde o Baiana System e Russo Passapusso são presenças quase obrigatórias.
A capa é de Ricardo H Fernandes com ilustração de Mauricio Fahd e direção de arte de Filipe Cartaxo. Disco viabilizado por edital do Natural Musical.
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